Era uma enxada comum. Cabo resistente
de madeira, medindo cerca de um metro de comprimento, e talvez uns quatro
centímetros de diâmetro. Deve haver uma metragem padrão para enxadas, como tudo
o mais nessa vida; mas Artur não sabia com certeza. Na ponta
do cabo, a gente já sabe: um ferro achatado, cujo gume afiado é feito para
cavar o chão, à força do homem, a fim de cumprir sua tarefa.
Todo o mundo sabe o que é uma
enxada, e quem não sabe, basta imaginar um cabo de vassoura, só que mais grosso,
com uma lâmina de ferro no lugar da piaçava. Ela é usada principalmente pelos
lavradores. É peça indispensável em qualquer roçado. Agricultura sem enxada é
difícil de se imaginar. São como a corda e a caçamba.
Estava repousando tranquilamente no
depósito, que ficava nos fundos da casa. Na verdade, parecia escanteada. E
estava mesmo. Afinal de contas, aquela não era uma casa de campo, apenas tinha
um gramado na frente. Por isso, a enxada nunca era utilizada, de modo que
estava meio esquecida. De onde viera, não posso dizer. Alguma alma criativa a
trouxera até lá. Junto a ela, no cômodo escuro, conviviam desinfetantes, panos
de chão, vassouras de toda sorte, aromatizantes de ambientes, água sanitária,
baldes, esfregões e até um espanador.
Num sábado ensolarado, a turma
chegou para o mutirão de limpeza. Arrastaram móveis, pintaram os cômodos,
limparam o quintal, queimaram folhas secas, regularam o som, instalaram
televisão, etc. Artur ficou responsável pelo jardim frontal, que incluía o
gramado. Chegou cedo e pôs logo mãos à obra.
Foi ele quem primeiro enxergou a
enxada. Lá fora, Julião, seu parceiro, aparava o mato com o cortador de grama
elétrico. Artur foi lá dentro e abriu o depósito. “Uma enxada”, exclamou. “Por
que está triste?”, pensou; “até chora. Mas há o cortador elétrico, que posso
fazer? Não há função para essa enxada aqui”, concluiu.
Mesmo assim, Artur pegou a enxada.
Era dia de mutirão, os ratos que saíssem de seus buracos, assim como as
baratas. Solenemente, transportou a enxada dos fundos até o jardim. Julião
laborava com vigor. Artur pousou a enxada no gramado, encostada na parede. Ela
sorria. Sorria mesmo? Sorria. Julião suava. Resolveu descansar um pouquinho. Chegou-se
para perto do amigo, desligou o aparador e passou a mão na testa, que brilhava.
Nesse momento, enxada e aparador ficaram lado a lado.
Artur observava. O vento soprava. O
sol dardejava. A vida acontecia.
Por debaixo da grama alta,
caramujos se escondiam. Que violência lhes parecia aquele solão, quando o
aparador elétrico raspava o cabelo do gramado e expunha-os cruelmente!
E sob aquele sol de verão, que
alegrava os pássaros e aborrecia os caramujos, Artur celebrou o casamento do
aparador com a enxada. Se bem que não era padre, mas isso lhe pareceu um mero detalhe.
Fez tudo em silêncio, enquanto Julião, o único convidado, parolava, alheio ao
matrimônio silencioso que transcorria bem debaixo do seu nariz. Depois, o celebrante abençoou o casal e desejou boa sorte.
Finda a cerimônia, Artur pegou de
novo a enxada. “Não tem função essa enxada aqui, entendeu, Julião? Vou
guardá-la no depósito.” Julião assentiu com a cabeça. O vento curtia sua pele. Julião
era um sujeito legal. Artur disse que ia guardá-la de volta, e Julião religou o
motor da enxada elétrica.
No caminho de volta, a enxada
sorria mais. Sorria? Sorria. Lá dentro, antes de hoje, transitava de frio,
solitária, sem função, sem vida, sem existência.
Agora, sorria. Casara-se com o
aparador de grama. Não sentia mais frio.
E à noite, na hora de dormir, Artur
se lembrou candidamente da sua enxadinha. E, sorrindo, rogou assim aos céus:
“Querido Deus, me dê um amor
também.”