segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

O Casamento da Enxada


Era uma enxada comum. Cabo resistente de madeira, medindo cerca de um metro de comprimento, e talvez uns quatro centímetros de diâmetro. Deve haver uma metragem padrão para enxadas, como tudo o mais nessa vida; mas Artur não sabia com certeza. Na ponta do cabo, a gente já sabe: um ferro achatado, cujo gume afiado é feito para cavar o chão, à força do homem, a fim de cumprir sua tarefa.

Todo o mundo sabe o que é uma enxada, e quem não sabe, basta imaginar um cabo de vassoura, só que mais grosso, com uma lâmina de ferro no lugar da piaçava. Ela é usada principalmente pelos lavradores. É peça indispensável em qualquer roçado. Agricultura sem enxada é difícil de se imaginar. São como a corda e a caçamba.

Estava repousando tranquilamente no depósito, que ficava nos fundos da casa. Na verdade, parecia escanteada. E estava mesmo. Afinal de contas, aquela não era uma casa de campo, apenas tinha um gramado na frente. Por isso, a enxada nunca era utilizada, de modo que estava meio esquecida. De onde viera, não posso dizer. Alguma alma criativa a trouxera até lá. Junto a ela, no cômodo escuro, conviviam desinfetantes, panos de chão, vassouras de toda sorte, aromatizantes de ambientes, água sanitária, baldes, esfregões e até um espanador.

Num sábado ensolarado, a turma chegou para o mutirão de limpeza. Arrastaram móveis, pintaram os cômodos, limparam o quintal, queimaram folhas secas, regularam o som, instalaram televisão, etc. Artur ficou responsável pelo jardim frontal, que incluía o gramado. Chegou cedo e pôs logo mãos à obra.

Foi ele quem primeiro enxergou a enxada. Lá fora, Julião, seu parceiro, aparava o mato com o cortador de grama elétrico. Artur foi lá dentro e abriu o depósito. “Uma enxada”, exclamou. “Por que está triste?”, pensou; “até chora. Mas há o cortador elétrico, que posso fazer? Não há função para essa enxada aqui”, concluiu.

Mesmo assim, Artur pegou a enxada. Era dia de mutirão, os ratos que saíssem de seus buracos, assim como as baratas. Solenemente, transportou a enxada dos fundos até o jardim. Julião laborava com vigor. Artur pousou a enxada no gramado, encostada na parede. Ela sorria. Sorria mesmo? Sorria. Julião suava. Resolveu descansar um pouquinho. Chegou-se para perto do amigo, desligou o aparador e passou a mão na testa, que brilhava. Nesse momento, enxada e aparador ficaram lado a lado.

Artur observava. O vento soprava. O sol dardejava. A vida acontecia.

Por debaixo da grama alta, caramujos se escondiam. Que violência lhes parecia aquele solão, quando o aparador elétrico raspava o cabelo do gramado e expunha-os cruelmente!

E sob aquele sol de verão, que alegrava os pássaros e aborrecia os caramujos, Artur celebrou o casamento do aparador com a enxada. Se bem que não era padre, mas isso lhe pareceu um mero detalhe. Fez tudo em silêncio, enquanto Julião, o único convidado, parolava, alheio ao matrimônio silencioso que transcorria bem debaixo do seu nariz. Depois, o celebrante abençoou o casal e desejou boa sorte.

Finda a cerimônia, Artur pegou de novo a enxada. “Não tem função essa enxada aqui, entendeu, Julião? Vou guardá-la no depósito.” Julião assentiu com a cabeça. O vento curtia sua pele. Julião era um sujeito legal. Artur disse que ia guardá-la de volta, e Julião religou o motor da enxada elétrica.

No caminho de volta, a enxada sorria mais. Sorria? Sorria. Lá dentro, antes de hoje, transitava de frio, solitária, sem função, sem vida, sem existência.

Agora, sorria. Casara-se com o aparador de grama. Não sentia mais frio.

E à noite, na hora de dormir, Artur se lembrou candidamente da sua enxadinha. E, sorrindo, rogou assim aos céus:

“Querido Deus, me dê um amor também.”

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

Luz, câmera e Feliz Ano Novo.

Começar 2013 assistindo a um bom filme me parece um excelente presságio.

Arca Russa, de Aleksandr Sokúrov; eu já ouvira falar nele, mas só agora assisti a ele. O filme não tem cortes, foi filmado numa só sequência! Isso sim é que é um beijaço entre o teatro e o cinema (e as artes plásticas, mas aí você terá de ver o filme para compreender). Up to my top ten list.

O filme me fez pensar numa coisa: quanto de mentira deve conter na arte para que ela possa comunicar a verdade que reside dentro de cada um de nós?

Sério mesmo: um filme desse só acontece uma vez na vida e outra na morte. Se é que a morte tenha algo a ver com o cinema.



Por sinal, curioso fenômeno acaba de me ocorrer: além de ter iniciado 2013 com uma "bomba cinematográfica", igualmente encerrei 2012 com outro filmaço. Histórias Cruzadas, cujo diretor eu desconheço, mas que foi capaz de me emocionar demais. Retrata a realidade das empregadas domésticas negras da cidade de Jackson, no estado do Mississipi, durante os sombrios anos do apartheid dos EUA. Daí, uma escritora branca, jovem, bonita e inteligente resolve narrar as histórias daquelas mulheres oprimidas e publicá-las num livro. 

Oh, a literatura tão assim, no cinema, exercendo sua função mais célebre: nomear uma dor e promover a mudança no mundo.




Potente! 

Ah, quero dizer também que fui, no dia de ontem, ao Cinemark do shopping RioMar e... E o dinheiro é fogo mesmo. Que coisa! Aquilo é que é cinema. O Hermitage do cinema recifense. Gostei dessa comparação. Ali, qualquer filme (nem tanto) vale a pena ser assistido, só para estar no conforto - ou melhor, luxo - daquela sala de cinema. Um verdadeiro presente para qualquer cinéfilo. 

Pois é, saí de 2012 e ingressei em 2013 como vim ao mundo: no ventre da arte, de placenta com o cinema, que só não me tem mais que a Literatura.

A educação pela arte: um dia escrevo um ensaio sobre o tema.

Feliz 2013, ao som de Erik Satie.