Eh! Acabam de matar um vivente na rua em frente. Ouvi os estalos, pensei que eram fogos, mas depois do segundo pipoco, constatei que eram tiros. Tiros, tiros em Boa Viagem. Em poucos segundos, o povo se aglomerou, a polícia chegou e não perseguiu ninguém, tampouco isolou o local do crime. Logo mais, chegará a imprensa, depois a família e amanhã, passeata na Avenida Boa Viagem. Enquanto isso, o prefeito janta, o governador beberica digestivo, a presidente articula qualquer coisa e deputados e senadores confabulam sobre as obras da Copa do Mundo.
Pensei que eram fogos, depois constatei que eram balas. Ali está o corpo, estirado, virado de banda, sem nenhuma dignidade. Chega a notícia: era um traficante, foi morto por outro, acerto de contas.
O alívio é geral: eles que se danem, eles que se matem. É menos um. No fundo, porém, foi mais um crime. Homicídio, dirão os juristas. Não importa! Importa que foi mais um crime, mais uma violência. Está lá, atirado. Se não fosse pelo sangue que escorre na rua e pela respiração ausente de suas narinas, dir-se-ia que dormia. Tomo do binóculo para ver mais de perto. Quero também fazer parte do terror que é a morte misturada à violência do assassinato. Lágrimas pulsam dentro do meu peito, mas eu as represo nas abas dos olhos. Vale lá a pena chorar por um traficante morto?
Relembro a cena: fazia meia-hora e eu contemplava a lua, que ia mais linda do que nunca. Profetizava os tempos de paz que os céus nos reservam. E, de repente, os estalos... Foi-se mais um homem. O agressor trajava camisa em tom de pastel e calças moletom. Vestiu uma mochila nas costas (seguramente os despojos do crime) e deslizou pela rua, querendo se misturar às sombras. Fugiu, ninguém o apanhou. Que carrega em seu coração? Matou como Cândido ao barão ou como Raskólnikov à velha Aliena Ivánovna? Que sentiu ao chegar a casa?
Não importa. Foi um crime. Há poucos metros da minha casa, numa rua por onde eu trafego constantemente. Gente honesta anda por ali, gente que não mata e não quer morrer. Agora eu entendo o nosso prefeito, quando alugou carros blindados para ele e para o vice-prefeito. A cidade está muito perigosa. Entendo também o ex-governador quando abriu uma empresa de segurança privada. E entendo o ex-prefeito, quando mandou seus filhos para morarem na Europa.
Eu, se pudesse, teria feito todas essas coisas também: compraria um carro blindado para o meu pai, mandaria minhas irmãs para a Europa e abriria um empresa de segurança privada para o povo contratar. Eh! os políticos não são tão bobos quanto a gente pensa...
Dirão: o homem é produto do meio. Mas eu digo, depois do meu mestre: o meio é produto do homem. E essa inversão de paradigma, tão óbvia a princípio, encerra em seu seio uma concepção filosófica que deseja modificar o mundo radicalmente; aliás, modificar, não, criar outro inteiramente novo.
Ao povo, ficará a versão que melhor aprouver a quem manda na cidade. Os abutres já estão ali, no local de cena. Vestem coletes marrons e anotam depoimentos em pequenos cadernos. Há câmeras de TV e máquinas fotográficas. Veem-se os flashes. Ouvem-se sirenes. Chegam os peritos. Quem comprará o caixão? Cemitério, escolheram? O redator do jornal se ouriça: - pessoal, temos que mudar a capa do jornal de amanhã, ele diz. E apaga-se a cena.
Foi mais um crime. Amanhã eles contarão na televisão. Até quando, pergunta meu coração. Eh! Artur. Está chegando a hora. É preciso ter fé. É preciso continuar lutando pelo mundo melhor. Vá dormir. Melhor o que faz. Dormindo, esquece um pouquinho. Vou mandar aquele colibri que tanto o alegra quando sonha. Verá que grande pílula contra o medo!
É preciso ter fé. Os assassinatos vão terminar. Imagine a cidade coberta de flores, de papoulas vermelhas, idênticas à da tua infância, meu filho. E luta, na física e na metafísica. Mas, agora, dorme e descansa, que eu vou recolher mais esta alma que deixou o teu mundo.
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