Ontem de
madrugada, voltando da escola de Filosofia que frequento quase todos os dias,
eu já passava pela Avenida Domingos Ferreira, na altura da farmácia Big Ben
(existem milhares delas, eu sei), quando fui surpreendido pelo grito assustado
da minha irmã, que ia no banco do passageiro.
Era mais de
meia-noite, e eu vinha viajando nos assuntos mais sublimes que se possa crer,
como, por exemplo, o julgamento de Sócrates e o Mundo das Ideias de Platão;
daí, vocês podem imaginar o susto que eu levei quando ela soltou aquele grito
totalmente inesperado. Sustaço, vi a hora eu ter um infarto!
O motivo: um
gato na pista.
- Qual gato!
- ralhei, irritado tanto pelo seu grito quanto por ter sido pego de surpresa
quando estava viajando na filosofia. - Qual gato, menina?! Deixa disso!
- Um gatinho
estirado na pista... - sussurrou minha irmã.
Minha
irmã parecia bastante abalada com o que vira. Balbuciou mais algumas palavras
incompletas e depois tapou a própria boca com a mão, em sinal de profunda
comiseração e abalo espiritual. Nesse instante, Lila encostou o carro dela ao
lado do nosso, abaixou o vidro e falou sobre o mesmo gato, com cara de dó.
Naquele
momento, compreendi que as mulheres realmente são seres mais sensíveis que os
homens, pois eu, além de não ter percebido o bichano na pista, não tive o menor
impulso de ajudá-lo quando minha irmã gritou pela sua vida.
Diante dos
apelos emocionados das meninas e movido por um sentimento de remorso, decidi
retornar com elas e tentar ajudar o gatinho, que, segundo minha irmã, estava de
olhos abertos (ela viu até o olho do gato aberto!!!). Chegando de volta ao
mesmo ponto da avenida, dito e feito: lá estava o pobre felino, de pele negra e
íris fluorescente, agonizando no meio da pista. O pobrezinho estava bastante
assustado e com a pata traseira direita fraturada. Havia sido vítima de um
atropelamento, mas, por sorte, o choque não fora fatal.
Encostamos os
veículos próximos ao meio fio, ligamos o alerta, saltamos e nos pusemos a
sinalizar para evitar que os poucos carros que transitavam pela avenida àquela
hora passassem por cima do pobre animal. Um sujeito que vinha numa caminhoneta freou
a tempo de terminar o serviço, desviou do bichinho e seguiu seu caminho. Dali a
alguns segundos, outro carro parou, mas em vez de seguir seu caminho,
estacionou mais à frente e, de dentro dele, saltaram duas meninas bonitas e
simpáticas, que perceberam o ocorrido. Chamavam-se Aline e Débora, mas nós só
nos apresentaríamos mais tarde.
Enquanto as meninas
confabulavam sobre a dor do pobre gatinho, eu só conseguia pensar no perigo que
era estarmos ali, alta noite, numa das avenidas mais movimentadas de uma das
capitais mais violentas do Brasil. Sem contar, é claro, no risco de sermos
atropelados por algum motorista bêbado, já que nós estávamos literalmente no meio da rua.
Um carro de
polícia passou e eu fiz sinal de "legal", mas eles nem deram atenção
e foram estacionar na entrada da Big Ben. "O gato que se foda",
pensaram, certamente. "Com tanto bandido pra prender, o gato que se foda.
Deixa isso pros burguesinhos."
De dentro da viatura, saltou um velho bêbado de barbas brancas. "Ajudar o
gato, não ajudam, mas o bêbado...", pensei, indiferente. "Seus
putos".
Depois de
suspirar bastante, Débora foi até à calçada, remexeu o lixo e dali tirou um
suéter azul-marinho todo estropiado. Com ele, enrolou o gatinho como se fosse
um recém-nascido e nós o levamos até a calçada. O bichano agonizava, seus olhos
estavam esbugalhados, devia estar sentindo uma dor dos diabos. Do lado direito
da sua boca, um fio de sangue escorria moderadamente, sugerindo que a pancada,
além de ter causado o esmagamento de sua perna direita, causou um leve (todo
brasileiro tem um pouco de veterinário?) traumatismo em sua face. As cenas eram
fortes.
Deitamos o
gatinho na calçada, enrolado no suéter. O bichinho, apesar de estar nitidamente
atordoado pela dor insuportável da pancada, debatia-se corajosamente e tentava
a todo custo se por nas patas. Débora tentava acalmá-lo. "Cuidado para ele
não te morder", adverti. Estive para perguntar se ela era veterinária, mas
desisti. Lá da porta da farmácia, o velho bêbado da viatura lançou olhares em
nossa direção. "Só falta essa porra desse bêbado resolver vir nos
ajudar", pensei. Mas, por sorte, ele estava bêbado demais para prestar socorro
a qualquer criatura além dele mesmo, e, cambaleando, entrou na Big Ben. A
viatura, então, partiu.
Reunidas em
torno do gatinho, que tentava a todo custo se desvencilhar do suéter, as
meninas tricoteavam dolorosos suspiros de sofrimento. Lá importava que fosse um
gato? Ainda que preto? E de rua? Nada! Era um animal que sofria, isso é tudo. Lila
buscava acalmar as dores do bichinho com uma sessão de body talk, alternando batidinhas com as pontas dos dedos no seu peito
e na sua testa. Enquanto isso, eu buscava de cabeça algum órgão público para o
qual pudesse ligar para socorrer o enfermo. "190? Não, a polícia já mandou
o gato se fuder mesmo. Carrocinha? Acho que não existe, só nos contos-de-fada.
Bombeiros?"
- Vamos levar
ele no veterinário - exclamei.
As meninas se
entreolharam.
- Boa ideia -
responderam. - Tem um veterinário 24 horas ali na frente.
- É dele que
estou falando - respondi, otimista.
- Pega aquela
tábua ali para a gente coloca-lo em cima - sugeriu Aline, apontando para uma
tábua que também se encontrava sobre o lixo. Peguei a tábua e, com a ajuda de
Débora (ela mais do que eu, confesso) suspendemos o bichinho e o colocamos
sobre a pequena peça de madeira, que serviu perfeitamente de maca improvisada.
Levamos alguns minutos discutindo a melhor forma de transferir o enfermo para o
hospital - se sobre o assoalho do banco do passageiro ou se na mala do carro.
Mas o gatinho simplesmente não ficava quieto sobre a maca, talvez pressentindo
que ela fosse sinal de morte. Então, não tivemos outra saída a não ser tirá-lo
da maca e colocá-lo dentro de uma caixa de papelão, que também estava no lixo.
- Vamos todos
para lá - disse eu, enquanto Aline terminava de acomodá-lo sobre o assoalho do
seu carro. - Assim, será mais fácil convencer o veterinário de que se trata de
uma caridade e...
Sim! Eu
queria salvar o gato, mas não queria ter que gastar dinheiro para isso. Ora, se
cinco jovens saudáveis eram capazes de parar na avenida Domingos Ferreira, mais
de meia-noite, arriscando suas próprias vidas para tentar salvar um gato preto,
por que o veterinário negaria a sua contribuição? Sociedade não é colaboração?
Em menos de 5
minutos chegamos ao 24h. Estacionamos sobre a calçada e apeamos, apressados.
Aline carregava a caixa com apreensão, pois o gatinho se debatia muito dentro
dela. Os flanelinhas que tomavam conta dos carros dos clientes do restaurante
vizinho se agitaram ao ver a cena:
- É um gato,
é?
- É.
- Morreu?
- Não, né,
porra! Se tivesse morrido, a gente levava no cemitério, não no veterinário.
Dentro da
clínica, o atendente, apesar do sono, recebeu-nos com educação. O lugar estava
repleto de prateleiras, contendo produtos para animais, tais quais coleiras,
caminhas de dormir, brinquedinhos de borracha, ração, etc., e rescendia a pelo
de cachorro molhado.
- Esperem que
eu vou chamar o veterinário - disse o atendente, subindo as escadas em direção
à enfermaria, onde possivelmente o cara tirava uma soneca.
Enquanto o
esperávamos voltar, ficamos a observar a enorme variedade de produtos que havia
na clínica. Aline depositou a caixa no chão, ao pé da porta de entrada, e
voltou a conversar com Débora, que até então não dera uma palavra. Minha irmã e
Lila estavam distraídas com os produtinhos das prateleiras, enquanto eu
mantinha os olhos fixos na porta da enfermaria, no aguardo do atendente. De
repente, fomos chamados à atenção por Aline. Naquele instante, a caixa de
papelão na qual nós havíamos trazido o gatinho já não era mais uma simples caixa,
era um caixão: o gatinho morrera. Aline foi a primeira a perceber:
- Morreu -
ela disse, em voz alta, com o semblante decepcionado. Chegamos todos próximo à
caixa, para espiar: eu, minha irmã, Lila, Débora e Aline. De fato, o bichinho
parara de respirar e nos seus olhos já não havia mais a chama da vida. A
lâmpada fluorescente que minutos antes refletia a luz dos faróis dos carros na
avenida apagara-se para sempre. Olhando para aquele corpo intumescido e imóvel,
lembrei-me da expressão em seu rosto quando o resgatamos da avenida: olhava
para o além, como se já se enxergasse a morte em outra dimensão. Os gatos
possuem esse poder de enxergar seres de outras dimensões, tanto que eles eram
considerados animais sagrados no antigo Egito. E em nenhum momento choramingou
ou desisitiu; o tempo inteiro tentou se colocar de pé. Se fosse eu no lugar
dele, teria morrido com a mesma decência?
Mesmo acreditando
que o gatinho já havia morrido, levamos o seu cadáver até a mesa da enfermaria,
onde o veterinário o examinou. Auxiliado pelo atendente, o doutor apalpou o
gatinho durante algum tempo, mas, enfim, decretou a sua morte. Houve uma leve
comoção por parte das meninas. Eu também me comovi. A morte é sempre apavorante,
principalmente quando você está envolvido em suas tranças. Era o fim do gatinho
da Domingos Ferreira.
- E agora,
como vamos enterrá-lo? - perguntou Aline.
- Deixamos na
rua, próximo a algum lixeiro - respondi, pressentindo a facada que viria em
seguida.
- Não -
rebateu o veterinário -, existe uma lei municipal que proíbe sair daqui com
corpos de animais mortos e deixá-los na rua.
Por um
instante, meu lado advogado quis perguntar o número da bendita lei e questionar
sua constitucionalidade, mas resolvi me manter calado, em respeito à gravidade
do instante.
- Nós temos
uma empresa que vem buscar os cadáveres para incinerá-los - completou o
veterinário. Enquanto isso, o sem-vergonha do atendente continuava a apalpar o
cadáver, simulando investigar a causa
mortis.
Silêncio na
enfermaria.
- E quanto
custa esse serviço? - perguntou Débora, corajosa como sempre.
- 95 Reais -
respondeu o veterinário, um pouco vexado.
"Nessa
porra", pensei, como um bom cristão.
- É... -
balbuciou Débora.
- Vocês
querem rachar esse valor? - sugeriu Lila, que sempre tem boas ideias, porque é
uma alma boa de verdade, enquanto eu só conseguia pensar que mais uma vez o
mercado saíra vencedor.
- Sim! -
exclamamos todos, menos o veterinário e seu assistente, que de resto não
estavam nem um pouco a fim de fazer caridade nenhuma. Eu também entrei na
quota, é claro, embora duvidando seriamente que aqueles 95 reais seriam gastos
na incineração do nosso gato, quando ele poderia muito bem ser enterrado de
graça em qualquer canteiro do subúrbio... Julguei que definitivamente não valia
a pena entrar naqueles pormenores. Se eu falasse o que pensava, ia acabar me
indispondo com o veterinário e ainda por cima sairia como o advogado filho da
puta mercenário de uma figa. O melhor mesmo era pagar os R$ 95,00 e fechar a
noite com a sensação de que um ato de bondade havia sido praticado.
Na saída,
Débora e minha irmã descobriram que trabalhavam com coisas parecidas e trocaram
telefones. Elas duas e Aline ficaram conversando sobre teatro e libras. Na
verdade, foi só nessa hora que nós nos apresentamos. Eu e Lila as convidamos
para fazer o próximo Curso da nossa escola de Filosofia, e elas responderam que
talvez, que a gente se falava, aquela coisa toda.
- Pelo menos
a gente conheceu pessoas legais, talvez a morte do gatinho tenha servido para
isso - comentou Lila comigo, enquanto minha irmã conversava com Aline e Débora.
A observação de Lila foi muito útil, pois até então só conseguia enxergar aquela
morte como um meio de dar R$ 95,00 à clínica veterinária.
- E o pior
não é nada - interrompi. - Eu tinha sonhado contigo essa noite, passando pela
rua, num buggy amarelo, cheio de gatos pretos dentro
dele, mas eu não quis falar porque quem dirigia o buggy era um cara desconhecido. Depois,
vocês paravam defronte a um toldo branco, armado numa esquina, onde havia umas
meninas, e o sujeito te dava um beijo na boca.
- Caramba! -
exclamaram Lila e Aline, que ouviram a conversa.
Finalmente,
nós nos despedimos. Trocamos beijinhos e prometemos nos ver por aí, quem sabe?
Já dentro do
carro, comentei com minha irmã que duvidava muito que fosse haver qualquer
incineração ou coisa do tipo, e que achava mesmo que o gatinho seria enterrado
em qualquer baixa de capim por aí.
- E por que
tu não disse nada? - questionou minha irmã.
- Eu lá ia
frustrar todo mundo? - respondi.
- E por que
tu decidiu me frustrar agora, porra?
- Ah -
respondi, encolhendo os ombros - porque você calhou de estar aqui, agora. Além
disso, você não está nessa de incineração, está?