domingo, 10 de novembro de 2013

O GATINHO DA DOMINGOS FERREIRA


Ontem de madrugada, voltando da escola de Filosofia que frequento quase todos os dias, eu já passava pela Avenida Domingos Ferreira, na altura da farmácia Big Ben (existem milhares delas, eu sei), quando fui surpreendido pelo grito assustado da minha irmã, que ia no banco do passageiro.

Era mais de meia-noite, e eu vinha viajando nos assuntos mais sublimes que se possa crer, como, por exemplo, o julgamento de Sócrates e o Mundo das Ideias de Platão; daí, vocês podem imaginar o susto que eu levei quando ela soltou aquele grito totalmente inesperado. Sustaço, vi a hora eu ter um infarto!  

O motivo: um gato na pista. 

- Qual gato! - ralhei, irritado tanto pelo seu grito quanto por ter sido pego de surpresa quando estava viajando na filosofia. - Qual gato, menina?! Deixa disso!

- Um gatinho estirado na pista... - sussurrou minha irmã.

Minha irmã parecia bastante abalada com o que vira. Balbuciou mais algumas palavras incompletas e depois tapou a própria boca com a mão, em sinal de profunda comiseração e abalo espiritual. Nesse instante, Lila encostou o carro dela ao lado do nosso, abaixou o vidro e falou sobre o mesmo gato, com cara de dó. 

Naquele momento, compreendi que as mulheres realmente são seres mais sensíveis que os homens, pois eu, além de não ter percebido o bichano na pista, não tive o menor impulso de ajudá-lo quando minha irmã gritou pela sua vida.

Diante dos apelos emocionados das meninas e movido por um sentimento de remorso, decidi retornar com elas e tentar ajudar o gatinho, que, segundo minha irmã, estava de olhos abertos (ela viu até o olho do gato aberto!!!). Chegando de volta ao mesmo ponto da avenida, dito e feito: lá estava o pobre felino, de pele negra e íris fluorescente, agonizando no meio da pista. O pobrezinho estava bastante assustado e com a pata traseira direita fraturada. Havia sido vítima de um atropelamento, mas, por sorte, o choque não fora fatal.

Encostamos os veículos próximos ao meio fio, ligamos o alerta, saltamos e nos pusemos a sinalizar para evitar que os poucos carros que transitavam pela avenida àquela hora passassem por cima do pobre animal. Um sujeito que vinha numa caminhoneta freou a tempo de terminar o serviço, desviou do bichinho e seguiu seu caminho. Dali a alguns segundos, outro carro parou, mas em vez de seguir seu caminho, estacionou mais à frente e, de dentro dele, saltaram duas meninas bonitas e simpáticas, que perceberam o ocorrido. Chamavam-se Aline e Débora, mas nós só nos apresentaríamos mais tarde.

Enquanto as meninas confabulavam sobre a dor do pobre gatinho, eu só conseguia pensar no perigo que era estarmos ali, alta noite, numa das avenidas mais movimentadas de uma das capitais mais violentas do Brasil. Sem contar, é claro, no risco de sermos atropelados por algum motorista bêbado, já que nós estávamos literalmente no meio da rua. 

Um carro de polícia passou e eu fiz sinal de "legal", mas eles nem deram atenção e foram estacionar na entrada da Big Ben. "O gato que se foda", pensaram, certamente. "Com tanto bandido pra prender, o gato que se foda. Deixa isso pros burguesinhos." De dentro da viatura, saltou um velho bêbado de barbas brancas. "Ajudar o gato, não ajudam, mas o bêbado...", pensei, indiferente. "Seus putos".

Depois de suspirar bastante, Débora foi até à calçada, remexeu o lixo e dali tirou um suéter azul-marinho todo estropiado. Com ele, enrolou o gatinho como se fosse um recém-nascido e nós o levamos até a calçada. O bichano agonizava, seus olhos estavam esbugalhados, devia estar sentindo uma dor dos diabos. Do lado direito da sua boca, um fio de sangue escorria moderadamente, sugerindo que a pancada, além de ter causado o esmagamento de sua perna direita, causou um leve (todo brasileiro tem um pouco de veterinário?) traumatismo em sua face. As cenas eram fortes.

Deitamos o gatinho na calçada, enrolado no suéter. O bichinho, apesar de estar nitidamente atordoado pela dor insuportável da pancada, debatia-se corajosamente e tentava a todo custo se por nas patas. Débora tentava acalmá-lo. "Cuidado para ele não te morder", adverti. Estive para perguntar se ela era veterinária, mas desisti. Lá da porta da farmácia, o velho bêbado da viatura lançou olhares em nossa direção. "Só falta essa porra desse bêbado resolver vir nos ajudar", pensei. Mas, por sorte, ele estava bêbado demais para prestar socorro a qualquer criatura além dele mesmo, e, cambaleando, entrou na Big Ben. A viatura, então, partiu.

Reunidas em torno do gatinho, que tentava a todo custo se desvencilhar do suéter, as meninas tricoteavam dolorosos suspiros de sofrimento. Lá importava que fosse um gato? Ainda que preto? E de rua? Nada! Era um animal que sofria, isso é tudo. Lila buscava acalmar as dores do bichinho com uma sessão de body talk, alternando batidinhas com as pontas dos dedos no seu peito e na sua testa. Enquanto isso, eu buscava de cabeça algum órgão público para o qual pudesse ligar para socorrer o enfermo. "190? Não, a polícia já mandou o gato se fuder mesmo. Carrocinha? Acho que não existe, só nos contos-de-fada. Bombeiros?"

- Vamos levar ele no veterinário - exclamei. 

As meninas se entreolharam.

- Boa ideia - responderam. - Tem um veterinário 24 horas ali na frente.

- É dele que estou falando - respondi, otimista.

- Pega aquela tábua ali para a gente coloca-lo em cima - sugeriu Aline, apontando para uma tábua que também se encontrava sobre o lixo. Peguei a tábua e, com a ajuda de Débora (ela mais do que eu, confesso) suspendemos o bichinho e o colocamos sobre a pequena peça de madeira, que serviu perfeitamente de maca improvisada. Levamos alguns minutos discutindo a melhor forma de transferir o enfermo para o hospital - se sobre o assoalho do banco do passageiro ou se na mala do carro. Mas o gatinho simplesmente não ficava quieto sobre a maca, talvez pressentindo que ela fosse sinal de morte. Então, não tivemos outra saída a não ser tirá-lo da maca e colocá-lo dentro de uma caixa de papelão, que também estava no lixo.

- Vamos todos para lá - disse eu, enquanto Aline terminava de acomodá-lo sobre o assoalho do seu carro. - Assim, será mais fácil convencer o veterinário de que se trata de uma caridade e...

Sim! Eu queria salvar o gato, mas não queria ter que gastar dinheiro para isso. Ora, se cinco jovens saudáveis eram capazes de parar na avenida Domingos Ferreira, mais de meia-noite, arriscando suas próprias vidas para tentar salvar um gato preto, por que o veterinário negaria a sua contribuição? Sociedade não é colaboração?

Em menos de 5 minutos chegamos ao 24h. Estacionamos sobre a calçada e apeamos, apressados. Aline carregava a caixa com apreensão, pois o gatinho se debatia muito dentro dela. Os flanelinhas que tomavam conta dos carros dos clientes do restaurante vizinho se agitaram ao ver a cena:

- É um gato, é?

- É.

- Morreu?

- Não, né, porra! Se tivesse morrido, a gente levava no cemitério, não no veterinário.

Dentro da clínica, o atendente, apesar do sono, recebeu-nos com educação. O lugar estava repleto de prateleiras, contendo produtos para animais, tais quais coleiras, caminhas de dormir, brinquedinhos de borracha, ração, etc., e rescendia a pelo de cachorro molhado. 

- Esperem que eu vou chamar o veterinário - disse o atendente, subindo as escadas em direção à enfermaria, onde possivelmente o cara tirava uma soneca.

Enquanto o esperávamos voltar, ficamos a observar a enorme variedade de produtos que havia na clínica. Aline depositou a caixa no chão, ao pé da porta de entrada, e voltou a conversar com Débora, que até então não dera uma palavra. Minha irmã e Lila estavam distraídas com os produtinhos das prateleiras, enquanto eu mantinha os olhos fixos na porta da enfermaria, no aguardo do atendente. De repente, fomos chamados à atenção por Aline. Naquele instante, a caixa de papelão na qual nós havíamos trazido o gatinho já não era mais uma simples caixa, era um caixão: o gatinho morrera. Aline foi a primeira a perceber:

- Morreu - ela disse, em voz alta, com o semblante decepcionado. Chegamos todos próximo à caixa, para espiar: eu, minha irmã, Lila, Débora e Aline. De fato, o bichinho parara de respirar e nos seus olhos já não havia mais a chama da vida. A lâmpada fluorescente que minutos antes refletia a luz dos faróis dos carros na avenida apagara-se para sempre. Olhando para aquele corpo intumescido e imóvel, lembrei-me da expressão em seu rosto quando o resgatamos da avenida: olhava para o além, como se já se enxergasse a morte em outra dimensão. Os gatos possuem esse poder de enxergar seres de outras dimensões, tanto que eles eram considerados animais sagrados no antigo Egito. E em nenhum momento choramingou ou desisitiu; o tempo inteiro tentou se colocar de pé. Se fosse eu no lugar dele, teria morrido com a mesma decência?

Mesmo acreditando que o gatinho já havia morrido, levamos o seu cadáver até a mesa da enfermaria, onde o veterinário o examinou. Auxiliado pelo atendente, o doutor apalpou o gatinho durante algum tempo, mas, enfim, decretou a sua morte. Houve uma leve comoção por parte das meninas. Eu também me comovi. A morte é sempre apavorante, principalmente quando você está envolvido em suas tranças. Era o fim do gatinho da Domingos Ferreira.

- E agora, como vamos enterrá-lo? - perguntou Aline.

- Deixamos na rua, próximo a algum lixeiro - respondi, pressentindo a facada que viria em seguida.

- Não - rebateu o veterinário -, existe uma lei municipal que proíbe sair daqui com corpos de animais mortos e deixá-los na rua.

Por um instante, meu lado advogado quis perguntar o número da bendita lei e questionar sua constitucionalidade, mas resolvi me manter calado, em respeito à gravidade do instante.

- Nós temos uma empresa que vem buscar os cadáveres para incinerá-los - completou o veterinário. Enquanto isso, o sem-vergonha do atendente continuava a apalpar o cadáver, simulando investigar a causa mortis

Silêncio na enfermaria.

- E quanto custa esse serviço? - perguntou Débora, corajosa como sempre.

- 95 Reais - respondeu o veterinário, um pouco vexado.

"Nessa porra", pensei, como um bom cristão.

- É... - balbuciou Débora.

- Vocês querem rachar esse valor? - sugeriu Lila, que sempre tem boas ideias, porque é uma alma boa de verdade, enquanto eu só conseguia pensar que mais uma vez o mercado saíra vencedor.

- Sim! - exclamamos todos, menos o veterinário e seu assistente, que de resto não estavam nem um pouco a fim de fazer caridade nenhuma. Eu também entrei na quota, é claro, embora duvidando seriamente que aqueles 95 reais seriam gastos na incineração do nosso gato, quando ele poderia muito bem ser enterrado de graça em qualquer canteiro do subúrbio... Julguei que definitivamente não valia a pena entrar naqueles pormenores. Se eu falasse o que pensava, ia acabar me indispondo com o veterinário e ainda por cima sairia como o advogado filho da puta mercenário de uma figa. O melhor mesmo era pagar os R$ 95,00 e fechar a noite com a sensação de que um ato de bondade havia sido praticado.

Na saída, Débora e minha irmã descobriram que trabalhavam com coisas parecidas e trocaram telefones. Elas duas e Aline ficaram conversando sobre teatro e libras. Na verdade, foi só nessa hora que nós nos apresentamos. Eu e Lila as convidamos para fazer o próximo Curso da nossa escola de Filosofia, e elas responderam que talvez, que a gente se falava, aquela coisa toda.

- Pelo menos a gente conheceu pessoas legais, talvez a morte do gatinho tenha servido para isso - comentou Lila comigo, enquanto minha irmã conversava com Aline e Débora. A observação de Lila foi muito útil, pois até então só conseguia enxergar aquela morte como um meio de dar R$ 95,00 à clínica veterinária.

- E o pior não é nada - interrompi. - Eu tinha sonhado contigo essa noite, passando pela rua, num buggy amarelo, cheio de gatos pretos dentro dele, mas eu não quis falar porque quem dirigia o buggy era um cara desconhecido. Depois, vocês paravam defronte a um toldo branco, armado numa esquina, onde havia umas meninas, e o sujeito te dava um beijo na boca.

- Caramba! - exclamaram Lila e Aline, que ouviram a conversa.

Finalmente, nós nos despedimos. Trocamos beijinhos e prometemos nos ver por aí, quem sabe?

Já dentro do carro, comentei com minha irmã que duvidava muito que fosse haver qualquer incineração ou coisa do tipo, e que achava mesmo que o gatinho seria enterrado em qualquer baixa de capim por aí.

- E por que tu não disse nada? - questionou minha irmã.

- Eu lá ia frustrar todo mundo? - respondi.

- E por que tu decidiu me frustrar agora, porra?

- Ah - respondi, encolhendo os ombros - porque você calhou de estar aqui, agora. Além disso, você não está nessa de incineração, está?


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