sábado, 11 de janeiro de 2014

Foi emociante, D., quando você me confessou que queria ficar comigo porque "precisava de amor".

Poucas vezes na minha vida ouvi uma frase com tanta dor, sinceridade e esperança.

Você me disse isso quase entre lágrimas. Lembro da expressão comprimida do seu rosto, e suas mãos de náufraga, que se agarra a um pedaço de madeira que flutua, no meio do oceano.

"Eu preciso de você porque eu preciso ser amada."

Mas é uma grande pena que você tenha precisado que eu a amasse quando eu já não era capaz de amor - logo eu, que antes te amei tanto. Tanto, tanto, que poucas vezes amei tanto uma mulher na vida.

Nunca pensei, D., que o desamor acostumasse tanto quanto o próprio amor. 


As sem-razões do amor

Eu te amo porque te amo,
Não precisas ser amante,
e nem sempre sabes sê-lo.
Eu te amo porque te amo.
Amor é estado de graça
e com amor não se paga.

Amor é dado de graça,
é semeado no vento,
na cachoeira, no eclipse.
Amor foge a dicionários
e a regulamentos vários.

Eu te amo porque não amo
bastante ou demais a mim.
Porque amor não se troca,
não se conjuga nem se ama.
Porque amor é amor a nada,
feliz e forte em si mesmo.

Amor é primo da morte,
e da morte vencedor,
por mais que o matem (e matam)
a cada instante de amor.

Drummond.

terça-feira, 24 de dezembro de 2013





Sim, é bem provável que Cristo não tenha nascido no dia 25 de dezembro, conforme alguns amigos já noticiaram no Facebook. Pelos cálculos que se fazem, o mês que mais se aproxima do possível nascimento de Jesus é agosto. J. J. Benítez, autor da clássica saga Cavalo de Troia, comemora o Natal em agosto. Quem quiser se informar melhor a respeito, pode ler o livro Astronautas de Yaveh, do mesmo autor.

Mas isso não é tão importante. Importante, penso, é todas as pessoas terem o direito de saber que provavelmente Cristo não nasceu em dezembro. Pronto. Os motivos que levaram os antigos a elegerem da data do Natal tem algo a ver com a comemoração do solstício de inverno entre os romanos. É algo assim. Dito isto, penso que se todos tivessem direito à possibilidade da dúvida, cada qual poderia ir buscar os argumentos para formar seu convencimento. O direito à dúvida deveria ser encartado na Constituição como direito fundamental do brasileiro.

À parte isto, é Natal. Dezembro. Seis dias para o fim do ano. Francamente - Jesus que me perdoe - é muito legal a data que escolheram para comemorar o Natal. E, no fundo, no fundo, acho que Jesus nem liga muito para esse fato. Acho que as ocupações dele são outras!

Jesus Cristo é o maior de todos. Acredito sinceramente que ele é filho do Pai, e que desceu diretamente do sétimo céu para recolocar os seres humanos no trilho. Sua presença entre nós significou a descoberta do amor ao próximo e, mais do que tudo, da esperança.

Quem já teve a oportunidade de precisar de Cristo e de pedir sua ajuda verdadeira, com todas as forças da alma, sabe do que eu estou falando.

Que em 2.014, a mensagem Dele seja cada dia mais compreendida, longe dos interesses daqueles que lucram com a distorção dos Seus ensinamentos.

Feliz Natal a todos!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Ninfomaníaca, de Lars von Trier

Não sei onde foi que eu li que os 2.000 anos da era cristã acabaram muito mal, e que esse "vácuo" deixado pelas malditas religiões está sendo preenchido pelo sexo. Leia-se: pela pornografia.

Quando a arte deixa de imitar a vida e passa a incorporar os elementos da realidade na sua própria feitura, é sinal do fim dos tempos, ou seja, de que chegamos no limite do contemporâneo, e que uma mudança radical está para se operar.

A fruta já está amadurecida, a lagarta está pronta para virar borboleta.

O novo filme de Lars von Trier, "Ninfomaníaca", traz uma cena (ou mais) de sexo entre os atores. A coisa aconteceu de verdade. Quando eu soube disso, eu me fiz logo a seguinte pergunta: por que os atores têm que transar de verdade no set de filmagem, visto que não se trata de um filme pornográfico? Ou se trata? Ou a vida está tão medíocre que a arte não tem mais o que imitar, sugerir?

Vamos lá, vamos lá! Aonde o sexo quer nos levar?

Você, que agora me lê, é do tipo "sexo anal com manteiga em Último Tango em Paris", sexualidade onírica de Eva Green em The Dreamers, ninfoleptia de Lolita, ou virgindade pura e pagã de Liv Taylor em Beleza Roubada? Ou triângulo amoroso, esborrando sensualidade e beleza, em Vicky Cristina Barcelona?




Quando o artista suja a arte com o seu próprio objeto, é hora de mudar. Acho que Lars von Trier é o maior cineasta vivo, o único sujeito que faz vibrar em seus filmes a filosofia ácida e rebelde de um Nietzsche, por exemplo. Portanto, ele é o satélite cujo sinal a gente tem que prestar atenção. A situação inspira cuidados. Dá para ouvir os estertores do doente terminal.

Não vi o filme ainda, mas, pelo trailer, dá para sentir a sua potência. Uma antropofagia da cultura moderna, é o que me parece. O cinema é o deus das artes, pois o alimenta a literatura.




Germinal.




terça-feira, 19 de novembro de 2013

João era um cara legal, um sujeito gente fina. Fazia de tudo pelos amigos. Advogado, era incapaz de cobrar honorários dos seus amigos mais próximos. Na verdade, sentia vergonha de cobrar honorários até dos clientes desconhecidos. Dir-se-ia que nem dos inimigos João se sentia à vontade para cobrar.

A exemplo de Sócrates, João achava que o conhecimento não se vendia, nem mesmo o conhecimento técnico, e sonhava com um mundo onde as pessoas trocassem informações e conhecimentos sem cobrar nada uma das outras, convivendo em harmonia e consumindo apenas o necessário para a sua sobrevivência.

Quando se deitava na cama para dormir, todas as noites, por mais cansado que estivesse, João passava horas e horas com os olhos fechados, na escuridão, imaginando o mundo onde as pessoas se esqueceriam do dinheiro e viveriam apenas para serem felizes, felizes de verdade. Era comum que João adormecesse com um sorriso no rosto, alegre com seus pensamentos, mas também não era raro que dormisse com o travesseiro molhado de lágrimas, triste por causa do mundo em que vivia, no estado em que se encontrava.

Da hora que acordava até a hora que ia dormir, João ficava imaginando maneiras de ajudar as pessoas, de ser feliz, de fazer os outros felizes, de brincar, de pular por aí, de fazer um  piquenique no parque da cidade, de se sentar no banquinho da praça pública e conversar com os mendigos, de confortar os doentes nos hospitais, de adotar as criancinhas abandonadas pelos pais, de resgatar os viciados em drogas, e todo esse tipo de coisa.

Esse era João, que se envergonhava quando recebia o pagamento das mãos dos clientes, porque achava que o conhecimento, por menor que fosse, não se vendia por dinheiro nenhum no mundo. João adorava trabalhar; se pudesse, passaria a vida inteira trabalhando, porque "o homem é o seu trabalho", dizia. O que não entrava na sua cabeça era trabalhar unicamente pelo dinheiro, o mesmo dinheiro que era rodado naquelas enormes máquinas de xérox dos bancos e, depois, distribuído pelo governo para que os homens se matassem por ele.

Por causa desse seu jeito de pensar, João não conseguia arranjar uma esposa. "Porque as mulheres precisam de muito, e eu, de muito pouco", pensava. Os amigos também começavam a achar que João era realmente doido, com suas ideias de liberdade, e as mulheres riam nas suas costas. Todos estavam sempre dispostos a se aproveitar de João, e certo dia, ele percebeu aquilo. Deste dia em diante, João foi ficando muito triste, isolado de todos, cheio de cicatrizes na alma e desanimado da vida. Parecia mais uma rosa, murchando no vaso. Seus olhos começaram a perder o brilho, aqueles olhos tão cheios de bondade. Então, ele começou a sentir necessidade de mudar. Teria que amar menos a humanidade e cuidar mais de si próprio.

João havia sido traído por um amigo de manhã, um amigo do qual ele gostava muito, e essa traição o levou à conclusão de que ele não era nenhum tipo do super-herói e que, portanto, não poderia amar a humanidade impunemente, sem suportar as duras penas que esse amor impunha. Fitando o quadro de São Francisco de Assis, João chorou.

Mais tarde naquela noite (já era de madrugada), João acordou sobressaltado. Seu quarto recendia a um perfume misterioso mas muito, muito delicado e gostoso; era um perfume para a alma e ele acreditou ter visto, naquele instante, estampado na parede, o rosto do nosso senhor Jesus Cristo.

João ficou muito impressionado com o que vira, e chorou novamente, porque sentiu que o nosso senhor Jesus Cristo havia aparecido em seu quarto para confortar sua alma, do mesmo jeito que havia feito com São Francisco, quando este recebeu as chagas do seu mestre.

Depois desse dia, João acomodou sua alma dentro de um quartinho iluminado, numa nuvem lá no céu, e nunca mais foi traído pelos amigos e muito menos zombado pelas mulheres. Aprendeu a lidar com eles. E todas as tardes, antes do por-do-sol, ele se senta na beira do mar e, contemplando o horizonte, conversa animado com os anjos e sorri bastante, comungando com Deus.

domingo, 10 de novembro de 2013

O GATINHO DA DOMINGOS FERREIRA


Ontem de madrugada, voltando da escola de Filosofia que frequento quase todos os dias, eu já passava pela Avenida Domingos Ferreira, na altura da farmácia Big Ben (existem milhares delas, eu sei), quando fui surpreendido pelo grito assustado da minha irmã, que ia no banco do passageiro.

Era mais de meia-noite, e eu vinha viajando nos assuntos mais sublimes que se possa crer, como, por exemplo, o julgamento de Sócrates e o Mundo das Ideias de Platão; daí, vocês podem imaginar o susto que eu levei quando ela soltou aquele grito totalmente inesperado. Sustaço, vi a hora eu ter um infarto!  

O motivo: um gato na pista. 

- Qual gato! - ralhei, irritado tanto pelo seu grito quanto por ter sido pego de surpresa quando estava viajando na filosofia. - Qual gato, menina?! Deixa disso!

- Um gatinho estirado na pista... - sussurrou minha irmã.

Minha irmã parecia bastante abalada com o que vira. Balbuciou mais algumas palavras incompletas e depois tapou a própria boca com a mão, em sinal de profunda comiseração e abalo espiritual. Nesse instante, Lila encostou o carro dela ao lado do nosso, abaixou o vidro e falou sobre o mesmo gato, com cara de dó. 

Naquele momento, compreendi que as mulheres realmente são seres mais sensíveis que os homens, pois eu, além de não ter percebido o bichano na pista, não tive o menor impulso de ajudá-lo quando minha irmã gritou pela sua vida.

Diante dos apelos emocionados das meninas e movido por um sentimento de remorso, decidi retornar com elas e tentar ajudar o gatinho, que, segundo minha irmã, estava de olhos abertos (ela viu até o olho do gato aberto!!!). Chegando de volta ao mesmo ponto da avenida, dito e feito: lá estava o pobre felino, de pele negra e íris fluorescente, agonizando no meio da pista. O pobrezinho estava bastante assustado e com a pata traseira direita fraturada. Havia sido vítima de um atropelamento, mas, por sorte, o choque não fora fatal.

Encostamos os veículos próximos ao meio fio, ligamos o alerta, saltamos e nos pusemos a sinalizar para evitar que os poucos carros que transitavam pela avenida àquela hora passassem por cima do pobre animal. Um sujeito que vinha numa caminhoneta freou a tempo de terminar o serviço, desviou do bichinho e seguiu seu caminho. Dali a alguns segundos, outro carro parou, mas em vez de seguir seu caminho, estacionou mais à frente e, de dentro dele, saltaram duas meninas bonitas e simpáticas, que perceberam o ocorrido. Chamavam-se Aline e Débora, mas nós só nos apresentaríamos mais tarde.

Enquanto as meninas confabulavam sobre a dor do pobre gatinho, eu só conseguia pensar no perigo que era estarmos ali, alta noite, numa das avenidas mais movimentadas de uma das capitais mais violentas do Brasil. Sem contar, é claro, no risco de sermos atropelados por algum motorista bêbado, já que nós estávamos literalmente no meio da rua. 

Um carro de polícia passou e eu fiz sinal de "legal", mas eles nem deram atenção e foram estacionar na entrada da Big Ben. "O gato que se foda", pensaram, certamente. "Com tanto bandido pra prender, o gato que se foda. Deixa isso pros burguesinhos." De dentro da viatura, saltou um velho bêbado de barbas brancas. "Ajudar o gato, não ajudam, mas o bêbado...", pensei, indiferente. "Seus putos".

Depois de suspirar bastante, Débora foi até à calçada, remexeu o lixo e dali tirou um suéter azul-marinho todo estropiado. Com ele, enrolou o gatinho como se fosse um recém-nascido e nós o levamos até a calçada. O bichano agonizava, seus olhos estavam esbugalhados, devia estar sentindo uma dor dos diabos. Do lado direito da sua boca, um fio de sangue escorria moderadamente, sugerindo que a pancada, além de ter causado o esmagamento de sua perna direita, causou um leve (todo brasileiro tem um pouco de veterinário?) traumatismo em sua face. As cenas eram fortes.

Deitamos o gatinho na calçada, enrolado no suéter. O bichinho, apesar de estar nitidamente atordoado pela dor insuportável da pancada, debatia-se corajosamente e tentava a todo custo se por nas patas. Débora tentava acalmá-lo. "Cuidado para ele não te morder", adverti. Estive para perguntar se ela era veterinária, mas desisti. Lá da porta da farmácia, o velho bêbado da viatura lançou olhares em nossa direção. "Só falta essa porra desse bêbado resolver vir nos ajudar", pensei. Mas, por sorte, ele estava bêbado demais para prestar socorro a qualquer criatura além dele mesmo, e, cambaleando, entrou na Big Ben. A viatura, então, partiu.

Reunidas em torno do gatinho, que tentava a todo custo se desvencilhar do suéter, as meninas tricoteavam dolorosos suspiros de sofrimento. Lá importava que fosse um gato? Ainda que preto? E de rua? Nada! Era um animal que sofria, isso é tudo. Lila buscava acalmar as dores do bichinho com uma sessão de body talk, alternando batidinhas com as pontas dos dedos no seu peito e na sua testa. Enquanto isso, eu buscava de cabeça algum órgão público para o qual pudesse ligar para socorrer o enfermo. "190? Não, a polícia já mandou o gato se fuder mesmo. Carrocinha? Acho que não existe, só nos contos-de-fada. Bombeiros?"

- Vamos levar ele no veterinário - exclamei. 

As meninas se entreolharam.

- Boa ideia - responderam. - Tem um veterinário 24 horas ali na frente.

- É dele que estou falando - respondi, otimista.

- Pega aquela tábua ali para a gente coloca-lo em cima - sugeriu Aline, apontando para uma tábua que também se encontrava sobre o lixo. Peguei a tábua e, com a ajuda de Débora (ela mais do que eu, confesso) suspendemos o bichinho e o colocamos sobre a pequena peça de madeira, que serviu perfeitamente de maca improvisada. Levamos alguns minutos discutindo a melhor forma de transferir o enfermo para o hospital - se sobre o assoalho do banco do passageiro ou se na mala do carro. Mas o gatinho simplesmente não ficava quieto sobre a maca, talvez pressentindo que ela fosse sinal de morte. Então, não tivemos outra saída a não ser tirá-lo da maca e colocá-lo dentro de uma caixa de papelão, que também estava no lixo.

- Vamos todos para lá - disse eu, enquanto Aline terminava de acomodá-lo sobre o assoalho do seu carro. - Assim, será mais fácil convencer o veterinário de que se trata de uma caridade e...

Sim! Eu queria salvar o gato, mas não queria ter que gastar dinheiro para isso. Ora, se cinco jovens saudáveis eram capazes de parar na avenida Domingos Ferreira, mais de meia-noite, arriscando suas próprias vidas para tentar salvar um gato preto, por que o veterinário negaria a sua contribuição? Sociedade não é colaboração?

Em menos de 5 minutos chegamos ao 24h. Estacionamos sobre a calçada e apeamos, apressados. Aline carregava a caixa com apreensão, pois o gatinho se debatia muito dentro dela. Os flanelinhas que tomavam conta dos carros dos clientes do restaurante vizinho se agitaram ao ver a cena:

- É um gato, é?

- É.

- Morreu?

- Não, né, porra! Se tivesse morrido, a gente levava no cemitério, não no veterinário.

Dentro da clínica, o atendente, apesar do sono, recebeu-nos com educação. O lugar estava repleto de prateleiras, contendo produtos para animais, tais quais coleiras, caminhas de dormir, brinquedinhos de borracha, ração, etc., e rescendia a pelo de cachorro molhado. 

- Esperem que eu vou chamar o veterinário - disse o atendente, subindo as escadas em direção à enfermaria, onde possivelmente o cara tirava uma soneca.

Enquanto o esperávamos voltar, ficamos a observar a enorme variedade de produtos que havia na clínica. Aline depositou a caixa no chão, ao pé da porta de entrada, e voltou a conversar com Débora, que até então não dera uma palavra. Minha irmã e Lila estavam distraídas com os produtinhos das prateleiras, enquanto eu mantinha os olhos fixos na porta da enfermaria, no aguardo do atendente. De repente, fomos chamados à atenção por Aline. Naquele instante, a caixa de papelão na qual nós havíamos trazido o gatinho já não era mais uma simples caixa, era um caixão: o gatinho morrera. Aline foi a primeira a perceber:

- Morreu - ela disse, em voz alta, com o semblante decepcionado. Chegamos todos próximo à caixa, para espiar: eu, minha irmã, Lila, Débora e Aline. De fato, o bichinho parara de respirar e nos seus olhos já não havia mais a chama da vida. A lâmpada fluorescente que minutos antes refletia a luz dos faróis dos carros na avenida apagara-se para sempre. Olhando para aquele corpo intumescido e imóvel, lembrei-me da expressão em seu rosto quando o resgatamos da avenida: olhava para o além, como se já se enxergasse a morte em outra dimensão. Os gatos possuem esse poder de enxergar seres de outras dimensões, tanto que eles eram considerados animais sagrados no antigo Egito. E em nenhum momento choramingou ou desisitiu; o tempo inteiro tentou se colocar de pé. Se fosse eu no lugar dele, teria morrido com a mesma decência?

Mesmo acreditando que o gatinho já havia morrido, levamos o seu cadáver até a mesa da enfermaria, onde o veterinário o examinou. Auxiliado pelo atendente, o doutor apalpou o gatinho durante algum tempo, mas, enfim, decretou a sua morte. Houve uma leve comoção por parte das meninas. Eu também me comovi. A morte é sempre apavorante, principalmente quando você está envolvido em suas tranças. Era o fim do gatinho da Domingos Ferreira.

- E agora, como vamos enterrá-lo? - perguntou Aline.

- Deixamos na rua, próximo a algum lixeiro - respondi, pressentindo a facada que viria em seguida.

- Não - rebateu o veterinário -, existe uma lei municipal que proíbe sair daqui com corpos de animais mortos e deixá-los na rua.

Por um instante, meu lado advogado quis perguntar o número da bendita lei e questionar sua constitucionalidade, mas resolvi me manter calado, em respeito à gravidade do instante.

- Nós temos uma empresa que vem buscar os cadáveres para incinerá-los - completou o veterinário. Enquanto isso, o sem-vergonha do atendente continuava a apalpar o cadáver, simulando investigar a causa mortis

Silêncio na enfermaria.

- E quanto custa esse serviço? - perguntou Débora, corajosa como sempre.

- 95 Reais - respondeu o veterinário, um pouco vexado.

"Nessa porra", pensei, como um bom cristão.

- É... - balbuciou Débora.

- Vocês querem rachar esse valor? - sugeriu Lila, que sempre tem boas ideias, porque é uma alma boa de verdade, enquanto eu só conseguia pensar que mais uma vez o mercado saíra vencedor.

- Sim! - exclamamos todos, menos o veterinário e seu assistente, que de resto não estavam nem um pouco a fim de fazer caridade nenhuma. Eu também entrei na quota, é claro, embora duvidando seriamente que aqueles 95 reais seriam gastos na incineração do nosso gato, quando ele poderia muito bem ser enterrado de graça em qualquer canteiro do subúrbio... Julguei que definitivamente não valia a pena entrar naqueles pormenores. Se eu falasse o que pensava, ia acabar me indispondo com o veterinário e ainda por cima sairia como o advogado filho da puta mercenário de uma figa. O melhor mesmo era pagar os R$ 95,00 e fechar a noite com a sensação de que um ato de bondade havia sido praticado.

Na saída, Débora e minha irmã descobriram que trabalhavam com coisas parecidas e trocaram telefones. Elas duas e Aline ficaram conversando sobre teatro e libras. Na verdade, foi só nessa hora que nós nos apresentamos. Eu e Lila as convidamos para fazer o próximo Curso da nossa escola de Filosofia, e elas responderam que talvez, que a gente se falava, aquela coisa toda.

- Pelo menos a gente conheceu pessoas legais, talvez a morte do gatinho tenha servido para isso - comentou Lila comigo, enquanto minha irmã conversava com Aline e Débora. A observação de Lila foi muito útil, pois até então só conseguia enxergar aquela morte como um meio de dar R$ 95,00 à clínica veterinária.

- E o pior não é nada - interrompi. - Eu tinha sonhado contigo essa noite, passando pela rua, num buggy amarelo, cheio de gatos pretos dentro dele, mas eu não quis falar porque quem dirigia o buggy era um cara desconhecido. Depois, vocês paravam defronte a um toldo branco, armado numa esquina, onde havia umas meninas, e o sujeito te dava um beijo na boca.

- Caramba! - exclamaram Lila e Aline, que ouviram a conversa.

Finalmente, nós nos despedimos. Trocamos beijinhos e prometemos nos ver por aí, quem sabe?

Já dentro do carro, comentei com minha irmã que duvidava muito que fosse haver qualquer incineração ou coisa do tipo, e que achava mesmo que o gatinho seria enterrado em qualquer baixa de capim por aí.

- E por que tu não disse nada? - questionou minha irmã.

- Eu lá ia frustrar todo mundo? - respondi.

- E por que tu decidiu me frustrar agora, porra?

- Ah - respondi, encolhendo os ombros - porque você calhou de estar aqui, agora. Além disso, você não está nessa de incineração, está?


segunda-feira, 4 de novembro de 2013


Um belo artigo, por http://fabiochap.wordpress.com/ .

O desaforo 100.000.000 – O rei do camarote e o quase invisível rastro de sangue

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Como vai você? Já tomou um soco de cifrões nesse final de semana? Se não, lhes apresento o ‘rei do camarote’ Alexander de Almeida, o empresário que ‘caiu na balada’ e nos deixou em choque. E o susto não foi porque ele tem dinheiro saíndo pelos poros. Sabemos que muitas pessoas têm. Mas pelo modo com o qual ele torra essa grana e pelo modo como ele chama aqueles que criticam seu estilo de vida: ‘invejosos’.
Para compreendermos melhor a figura do senhor Alexander precisamos, antes, pincelar o principal propósito do capitalismo: gerar lucro. Uma vez que o sistema capitalista seja praticado quase unanimemente em todo o mundo, podemos chegar à conclusão: se alguém vai ter muito desse lucro, é certo e fatal que alguém terá pouco; ou nada.
A revista Veja – uma lamentável ferramenta de manobras políticas – mandou benzasso no modo que apresentou o empresário ao grande público. Foi de uma ironia fina tão grande que nem o próprio entrevistado sacou o quanto estava sendo ridicularizado. Alguém ciente de que ele poderia soar ainda mais patético, disse assim: ‘Então, vamos filmar seu closet e depois uma porta vai se abrir bem em frente ao seu rosto; magicamente você já estará vestido com as melhores grifes. Aí sim estaremos prontos pra cair na noite’. Obviamente ele concordou com a fanfarronisse. É um cara já desprovido de senso crítico.
Ele sabe que é uma figura amada por uns e odiada por muitos outros. Se diverte com isso. Diz que é inveja. E realmente é. Não é que gostaríamos exatamente de ter uma Ferrari, já nos bastaria sair de um lugar ao outro – principalmente em grandes cidades – sem sermos aloprados por um transporte público humilhante. Sendo de carro, de trem, metrô ou busão, a gente só gostaria mesmo é de ser 1/5 respeitado como o rei do camarote é.
Nem acho que a maioria de nós – no máximo príncipes e princesas da pista molhada e apertada – quer seguranças com 1 metro de bíceps garantindo passagem. Só não sermos empurrados como gado às 7h da manhã na linha vermelha do metrô já estaria de bom tamanho.
Não precisamos de tanto champagne; se não faltar nada para nossos filhos já está bom. Nem fralda, nem suco, cultura diversificada e uma vaga naquela escola que realmente ensine a ter conhecimento. Não precisamos de um helicóptero para agilizar as coisas, basta que, se nossos pais e avós tiverem uma emergência, que sejam tratado como ser humano pelo sistema se saúde. Que as escaras dos nossos parentes doentes não tenham moscas e larvas se alimentando da carne podre nos corredores de hospitais públicos (http://goo.gl/UzRM8Z).
Acredito que a maioria de nós não faria questão de pessoas da mídia ou celebridades em nossas festas, bastaria que conseguíssemos terminar essa festa. No RJ um aniversário acabou com bomba de gás lacrimogêneo no bolo da criança (assista à partir de 5’20’ do vídeo – http://goo.gl/rgGm6v). A repressão nas favelas existe para que reis de camarotes pelo Brasil afora tenham cada vez mais garantias de que podem esbanjar. Um assaltante pobre a menos – morto – por uma vela a mais piscando na garrafa de Veuve Clicquot; a sociedade topa rapidinho.
O rei do camarote precisa entender que é inveja, sim, não dos carros, das casas, das bebidas e das bundas. É a inveja de poder levar uma vida feliz, aparentemente mais tranquila e menos submissa a ciclo porco de lucratividade. De não ser tirado, humilhado e atropelado por um sistema prontinho pra devolver qualquer indignação com um cassetete na sua testa, mesmo quando se está a trabalho (http://goo.gl/qQY1II).
Algumas pessoas não enxergam as contradições dentro de si. Compartilham vídeo e matéria sobre Alexander ao mesmo tempo em que criticam os movimentos sociais das ruas. Não percebem que um black block, quando quebra um banco ou concessionárias de carros importados, está gritando para que existam menos Alexanders e, consequentemente, menos Amarildos sumidos. As pessoas criticam a atitude de lavar o chão com champagne – citada na matéria – e, ao mesmo tempo, mandam a polícia ‘descer bala’ em quem se revolta com isso tudo. Não está muito claro que só estamos apanhando na rua pra sustentarmos mais reis do camarote? O consumo e os grandes empresários são os verdadeiros donos de SP, do RJ, do Brasil e de boa parte do mundo. Todo aquele que se voltar contra isso será espancado, preso e, assim que possível, condenado – preferencialmente como organização criminosa. Na visão das autoridades não é Alexander que comete um crime – ao menos às vistas -, é quem se revolta na prática com essa sujeira.
Uma das coisas que – preciso dizer – não é tanta inveja assim, é a visão de mundo que você, rei de areia, tem. Está muito claro que só o seu ângulo te importa, mas sinto lhe dizer, apesar da Gucci e Prada na sua gaveta, você está ‘so last week’ com esse pensamento. Somos de uma geração que quer outros ângulos. Quer mais verdade. Uma geração que se importa mais e cuida mais. Seus movimentos são no sentido de ter o luxo garantido e manter o padrão quase bilionário. Nossos cuidados são para que, ao menos, exista uma padrão não humilhante de vida. Seja nos impostos, nos transportes, na moradia, na educação e saúde. Alguns de nós não sentem necessidade de ir pra Ibiza todo ano, mas que, pelo menos, consigamos ir até a Câmara gritar que ‘tá tudo errado’ sem respirarmos gás, pimenta ou recebermos argolas de aço em nossos pulsos.
O dinheiro parece comprar tudo, mas só parece. Que comprou a sua decência, é um fato, rei do camarote. Mas ele não compra a minha chance de te dar a letra: vamos caçar seu estilo de vida até pegarmos e ele morrer por falta de circulação.
Esse lixo de tapete vermelho que te estendem é pintado com o sangue de cada fudido amassado no trem, assaltado na viela, assaltante de viela, preso nas manifestações, humilhado em seus empregos, retirado de suas casas, jogado nos presídios, abandonados nas UTI’s, rejeitados nas escolas, condenados por nascerem sem pulserinha vip.
Meu camarote é a rua e lá eu vou sangrar para dar fim à sua festa. 2014 vai te dar medo de viver, Alexander.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Recife de mármore

 "Logo na segunda página, onde assinalava como uma vergonha a preponderância dos interesses pecuniários, o banqueiro fez uma careta. Depois, entrando no capítulo das reformas, Frédéric pedia a liberdade do comércio:

- Como?... Mas perdão!

Ele não entendeu, e continuou. Reclamava o imposto sobre rendimento, o imposto progressivo, uma federação europeia, e a instrução do povo, o maior estímulo às belas-artes.

- Se o país desse a homens como Delacroix e Victor Hugo cem mil francos de rendimentos, que mal haveria nisso?

E no fim vinham os conselhos às classes superiores:

- Não poupeis nada, ó ricos! Dai! Dai sempre!"

Este pequeno discurso, elaborado  por um jovem burguês do início do século XIX, dirige-se a um nobre porém aflito banqueiro, que busca uma maneira de manter sua fortuna, em meio ao caudaloso golpe burguês que destronara o rei da França e abrira os caminhos para a implantação da República. São trechos do romance A Educação Sentimental, do célebre escritor francês, Gustave Flaubert.

Não me parece incrível que O Manifesto do Partido Comunista tenha inspirado definitivamente o referido golpe burguês. Parece-me incrível, isto sim, que muitos adoradores de Marx (muitos se encontram no poder, diga-se de passagem) ainda combatam uma ideia velha.

Ontem à noite, estive no Teatro de Santa Isabel para assistir à opera Don Giovanni, de Mozart. Certamente, quanto a isto, alguém dirá: "é uma vergonha essa ópera no Santa Isabel, pois tendo-a visto na Europa, jamais perderia meu tempo assistindo a ela em Recife". Eis o velho orgulho provinciano recifense, que atravanca o progresso da cidade como um todo. Não admira que o próprio Don Giovanni sorrisse disto.

Vivam as mulheres, viva o bom vinho, sustento e glória da humanidade!


Quando eu era mais jovem, conectei Machado de Assis a Gustave Flaubert de maneira indissolúvel. Mais tarde, veio se juntar aos dois primeiros a figura de Stendhal. Quincas Borba e Dom Casmurro não escondem as influências sofridas pelo nosso escritor fluminense dos autores de O Vermelho e o Negro e Madame Bovary; A Educação Sentimental, por sua vez, escancara a fonte estética e o drama social que marcou profundamente a obra de Machado.

Sabemos também que o Classicismo influenciou de maneira marcante a sua obra. Em seus romances, as óperas são sempre momentos especiais, ocasiões em que seus personagens deixam transbordar as fraquezas, os preconceitos, mas também onde confessam suas aspirações cosmopolitas. Ali, também, Machado sempre evoca a evolução do nosso país, por meio da arte, que alimenta o espírito e não deve faltar na educação das pessoas.

Eu, sentado no pátio da escola, a ler Dom Casmurro, suspirava: - No dia em que tivermos óperas em Recife, aí sim, serei feliz! Eis, pois, a ópera, a alegria, e, somadas a isto, as duras críticas à exploração que uma restrita casta de cidadãos impõe a uma multidão famigerada, carente de tudo - inclusive, de arte.

Longe de querer me tornar melodramático, mas Don Giovanni também não foge à lógica da angústia burguesa: o próprio Mozart não foi massacrado pela nobreza, pela falta de dinheiro, pelos prazos, pelo medo enfim de sucumbir à miséria?

A chegada de Marlos Nobre à regência da Orquestra Sinfônica do Recife já me havia alegrado, e agora torço para que esta ópera, - espero que a primeira de muitas -, permita que nossa cidade se sutilize progressivamente. Parece que o governador está de olho nisto. Nada lhe escapa, de fato. Marlos Nobre agradeceu muitíssimo ao prefeito no último concerto. Bem, se o caminho tiver que ser este, que seja. Contudo, não estacionemos!

Quanto à obra em si, muito temos a aprender com Don Giovanni - os homens a as mulheres! Vale a pena assistir. Afinal, "a morte dos pérfidos é sempre igual à sua vida". Ou, como eu gosto de dizer: a gente só morre daquilo que viveu.




Onde: Teatro de Santa Isabel.
Quando: hoje e amanhã, às 20h; domingo, às 19h.
Quanto: R$ 40,00, estudantes, idosos e professores pagam meia-entrada.
Dica: Preferir camarote, e chegar cedo para se sentar na frente.