Segunda-feira, 9 horas e 54 minutos
da manhã. Faz calor no Recife, principalmente na região que ocupa o interior
deste paletó negro que me veste. No caminho de casa para o trabalho, encontro o de
sempre: muito calor, muita sujeira, muitos buracos no asfalto, muito barulho,
muito pedinte, dezenas de ambulantes a gritar e praguejar contra o mal tempo,
etc. Enfim, tudo aquilo que compõe o belo cenário cotidiano da Veneza brasileira,
orgulho dos recifenses.
À beira do canal de Boa Viagem, que
perfuma o bairro nobre com seu odor de bosta e de urina, famílias inteiras de
mendigos maltrapilhos tomam café da manhã alegremente. De lá, cobiçam o hotel
abandonado, do outro lado da rua, que por duas ou três vezes ilegalmente ocuparam,
e que foi batizado, na ocasião, de Residencial Barack Obama.
Alheia a tudo isto, no rádio do meu
carro, Maria Bethânia canta vigorosamente alguma música de Roberto Carlos, que
de mais a mais, parece ter nascido para compor músicas para a diva baiana.
Chego ao meu destino em pouco menos de dez minutos e estaciono meu carro na rua mesmo, porque não há vagas no
estacionamento do escritório. Isso significa que, ao meio-dia, o carro estará
tão sujo quanto se passasse a semana inteira estacionado na garagem do
edifício. Mais dinheiro para o lavajato e menos para mim. Eis o ciclo da vida.
Dou bom-dia a todos os porteiros,
ao manobrista, ao segurança e à faxineira. Tomo o elevador e chego à minha
sala. Dou bom-dia a todos, dispo-me do paletó e sento na cadeira.
Segunda-feira, início da semana.
Pessoas começando regime, aquela coisa toda. No sábado, às nove horas da noite,
um cliente havia me ligado, cobrando uma posição a respeito do seu processo. No
sábado, eu disse. Às nove horas da noite, eu disse. Com o fórum fechado, e o
juiz, descansando. Ele próprio, o cliente, tinha a voz embargada pela cachaça.
E eu, o único que não tem direito a descanso. Nem aos sábados. Nem às nove
horas da noite. E depois, as pessoas não entendem por que os advogados são
gordos e carecas. Eis o ciclo da vida.
Por isso, na segunda-feira, a
primeira coisa que faço quando chego ao escritório – antes mesmo de entrar no
Facebook e invejar a felicidade geral da população recifense – é pegar no
telefone e ligar para o Fórum da cidade onde corre o processo do meu cliente.
- Bom dia. Me transfira para a 2.ª
Vara Cível, por favor (me permitam ocultar a cidade, para evitar constrangimentos
a possíveis leitores).
A telefonista transfere a ligação.
Atende o servidor da Vara. Digo o número do meu processo e ele o abre na tela
do seu computador:
- Pois não, senhor, em que posso
ajudar?
- Então, amigo, eu queria saber
como é que a gente faz para marcar a perícia do meu cliente; desde março que o
processo foi remetido para a perícia, e até agora eu não fui intimado, não
recebi ligação, nada.
- Sei...
- E como você pode imaginar, meu
cliente me liga bastante, cobrando... Afinal de contas, trata-se de uma verba
alimentar, e já faz um ano e meio que eu dei entrada no processo e...
- Olhe, senhor – interrompe o jovem,
destemido – o senhor tem que ligar para o Centro de Perícias e ver lá como é
que faz, porque aqui a gente não sabe como funciona.
Silêncio de ambos os lados.
- Você tem pelo menos o telefone de
lá? – pergunto, meio atarantado, porque confesso que não esperava por essa
resposta.
Lá de dentro, uma voz feminina
grita o número da Central de Perícias. O rapaz repete o número em voz alta, que
eu me apresso em anotar. Em seguida, agradeço e desligo o telefone.
E fico com a certeza de que o povo de Pernambuco
tem os políticos que merece e o Judiciário que merece, em obediência à lei que Platão, Rousseau e
tantos outros filósofos já se cansaram de explicar. E que o orgulho e o complexo
de superioridade especificamente dos recifenses ainda vai levar essa cidade de
volta à condição da qual ela não deveria nunca ter sido arrancada tão
indiscriminada e violentamente: para dentro do ventre do mangue.
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