terça-feira, 13 de agosto de 2013

A lama que vem do mangue.

Segunda-feira, 9 horas e 54 minutos da manhã. Faz calor no Recife, principalmente na região que ocupa o interior deste paletó negro que me veste. No caminho de casa para o trabalho, encontro o de sempre: muito calor, muita sujeira, muitos buracos no asfalto, muito barulho, muito pedinte, dezenas de ambulantes a gritar e praguejar contra o mal tempo, etc. Enfim, tudo aquilo que compõe o belo cenário cotidiano da Veneza brasileira, orgulho dos recifenses.

À beira do canal de Boa Viagem, que perfuma o bairro nobre com seu odor de bosta e de urina, famílias inteiras de mendigos maltrapilhos tomam café da manhã alegremente. De lá, cobiçam o hotel abandonado, do outro lado da rua, que por duas ou três vezes ilegalmente ocuparam, e que foi batizado, na ocasião, de Residencial Barack Obama.

Alheia a tudo isto, no rádio do meu carro, Maria Bethânia canta vigorosamente alguma música de Roberto Carlos, que de mais a mais, parece ter nascido para compor músicas para a diva baiana.

Chego ao meu destino em pouco menos de dez minutos e estaciono meu carro na rua mesmo, porque não há vagas no estacionamento do escritório. Isso significa que, ao meio-dia, o carro estará tão sujo quanto se passasse a semana inteira estacionado na garagem do edifício. Mais dinheiro para o lavajato e menos para mim. Eis o ciclo da vida.

Dou bom-dia a todos os porteiros, ao manobrista, ao segurança e à faxineira. Tomo o elevador e chego à minha sala. Dou bom-dia a todos, dispo-me do paletó e sento na cadeira.

Segunda-feira, início da semana. Pessoas começando regime, aquela coisa toda. No sábado, às nove horas da noite, um cliente havia me ligado, cobrando uma posição a respeito do seu processo. No sábado, eu disse. Às nove horas da noite, eu disse. Com o fórum fechado, e o juiz, descansando. Ele próprio, o cliente, tinha a voz embargada pela cachaça. E eu, o único que não tem direito a descanso. Nem aos sábados. Nem às nove horas da noite. E depois, as pessoas não entendem por que os advogados são gordos e carecas. Eis o ciclo da vida.

Por isso, na segunda-feira, a primeira coisa que faço quando chego ao escritório – antes mesmo de entrar no Facebook e invejar a felicidade geral da população recifense – é pegar no telefone e ligar para o Fórum da cidade onde corre o processo do meu cliente.

- Bom dia. Me transfira para a 2.ª Vara Cível, por favor (me permitam ocultar a cidade, para evitar constrangimentos a possíveis leitores).

A telefonista transfere a ligação. Atende o servidor da Vara. Digo o número do meu processo e ele o abre na tela do seu computador:

- Pois não, senhor, em que posso ajudar?
- Então, amigo, eu queria saber como é que a gente faz para marcar a perícia do meu cliente; desde março que o processo foi remetido para a perícia, e até agora eu não fui intimado, não recebi ligação, nada.
- Sei...
- E como você pode imaginar, meu cliente me liga bastante, cobrando... Afinal de contas, trata-se de uma verba alimentar, e já faz um ano e meio que eu dei entrada no processo e...
- Olhe, senhor – interrompe o jovem, destemido – o senhor tem que ligar para o Centro de Perícias e ver lá como é que faz, porque aqui a gente não sabe como funciona.

Silêncio de ambos os lados.

- Você tem pelo menos o telefone de lá? – pergunto, meio atarantado, porque confesso que não esperava por essa resposta.

Lá de dentro, uma voz feminina grita o número da Central de Perícias. O rapaz repete o número em voz alta, que eu me apresso em anotar. Em seguida, agradeço e desligo o telefone.

E fico com a certeza de que o povo de Pernambuco tem os políticos que merece e o Judiciário que merece, em obediência à lei que Platão, Rousseau e tantos outros filósofos já se cansaram de explicar. E que o orgulho e o complexo de superioridade especificamente dos recifenses ainda vai levar essa cidade de volta à condição da qual ela não deveria nunca ter sido arrancada tão indiscriminada e violentamente: para dentro do ventre do mangue.





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