Semana passada, eu estava no Rio de Janeiro. Tomei o avião de volta para Recife na terça-feira. Às onze horas da noite com mais 36 minutos, eu e mais uma centena de passageiros estávamos fora do solo. Voamos. Desconfortável, digo-lhes, conforme. Não somos pássaros. Os sonhos voam mais fácil.
Viajar de avião é para mim sempre um alumbramento. Fico impressionado. Há circunstâncias nesta vida que me fazem comportar como uma criança. Uma delas é viajar de avião. Quanta gente há neste mundo! Da hora em que eu entro pela porta de vidro de um aeroporto até o minuto que eu saio pela do outro, é um contentamento infantil.
Corre em mim certa substância divina, como corre pelo caule das árvores a seiva bruta que vem do solo e segue em direção às flores. Fico perplexo, vigilante, confiante. Deusificado.
Nesta última viagem, sentou-se do meu lado um sujeito enjoado. Trajava calças jeans, camisa de botões listrada, ensacada por dentro, cinto e sapatos pretos e um relógio com pulseira de aço e uma enorme circunferência que lhe encobria o punho quase inteiro. Não chegara ainda aos quarenta anos de idade. Seus cabelos começavam a cair, e as falhas no couro cabeludo já eram bem visíveis. A pele era um pouco desgastada, certamente por conta da exposição excessiva aos raios solares dos trópicos. Tinha, em resumo, o perfil de um contribuinte individual do INSS: casado, um tanto grosseiro, pouco educado, desconfiado, alheio aos Novos Baianos e inseguro quanto à originalidade da Bossa Nova, descrente dos anjos, católico por vocação, ex-fumante, bebedor de cerveja, comedor de cuscuz com leite, artilheiro da pelada de domingo e amigo do cara do almoxarifado da empresa.
Não era o tipo de pessoa que eu queria que se sentasse ao meu lado no voo, Deus que me perdoe. Francamente, a gente sempre espera que alguém legal se sente do nosso lado nas poltronas dos aviões, correto? Porque... Já pensou se ele cai? Ou se enfrenta uma turbulência grande, daquelas que parece que o avião acaba de passar por cima de uma lombada de nuvem?
Não, não! Importante estar junto de alguém legal nessas horas, principalmente quando estamos viajando sozinho.
Resumindo, a aura do cara não bateu com a minha. E, para piorar, o danado se pôs a roncar. Roncar, sentado, ao meu lado... Quase meia-noite, sobrevoando a Guanabara, umas saudades no peito, umas belezas ainda coladas nas retinas, uns perfumes entranhado nas narinas, e por fim, um Sándor Márai devastador no colo, querendo e não querendo ser lido, por muito temor pelos personagens, que já tinham ganhado vida e cujos destinos agora se haviam cruzado com o meu... E o sujeito, roncando do meu lado. Shit!
Diante daqueles roncos terríveis, instintivamente me virei de lado, bastante irritado. Minha fileira era a do lado direito. Assim, quando girei o pescoço na direção da fileira esquerda, lá estava a minha pérola. Meus olhos foram dar direto nela. Na mesma hora, os roncos e o seu dono ao meu lado, como que num passe de mágica, sumiram. De onde era aquela moça? Bolívia, Peru ou Equador. Colômbia, talvez. Não era brasileira, isso eu sabia com certeza. E era andina. Como era! A serenidade da Cordilheira lhe escapava pelos poros da pele achocolatada dos Andes. Os olhinhos puxados e os dentes em viaduto confirmavam. Era andina.
Presa nos elos da sua jaquetinha barata, cor de marfim com listras negras no ombro, a mocinha, que não era nem bonita nem feia, chorava dolorosamente. O corpo se sacudia inteiro aos soluços desesperados do choro, enquanto ela estendia o olhar faminto pela janelinha do avião. As lágrimas refletiam a luz da Guanabara, imitando as águas da baía. O rosto se contorcia inteiro diante da dor da partida. Que deixava aquela moça no Rio de Janeiro? Um filho, talvez. Um amor, com certeza. E raízes, com toda certeza desse mundo. Ali estava uma plantinha dos Andes, longe de casa, alçando voo para algum lugar distante, e se afogando em lágrimas de saudades lancinantes.
Mocinha andina, mocinha andina... Eu conheço aquela dor. Aquela dor de quem se separa do amor.
E eu te amei, do fundo do coração, como amo todos aqueles que, como eu, já sofreram com a dor de se separar de um grande amor.
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