terça-feira, 24 de dezembro de 2013





Sim, é bem provável que Cristo não tenha nascido no dia 25 de dezembro, conforme alguns amigos já noticiaram no Facebook. Pelos cálculos que se fazem, o mês que mais se aproxima do possível nascimento de Jesus é agosto. J. J. Benítez, autor da clássica saga Cavalo de Troia, comemora o Natal em agosto. Quem quiser se informar melhor a respeito, pode ler o livro Astronautas de Yaveh, do mesmo autor.

Mas isso não é tão importante. Importante, penso, é todas as pessoas terem o direito de saber que provavelmente Cristo não nasceu em dezembro. Pronto. Os motivos que levaram os antigos a elegerem da data do Natal tem algo a ver com a comemoração do solstício de inverno entre os romanos. É algo assim. Dito isto, penso que se todos tivessem direito à possibilidade da dúvida, cada qual poderia ir buscar os argumentos para formar seu convencimento. O direito à dúvida deveria ser encartado na Constituição como direito fundamental do brasileiro.

À parte isto, é Natal. Dezembro. Seis dias para o fim do ano. Francamente - Jesus que me perdoe - é muito legal a data que escolheram para comemorar o Natal. E, no fundo, no fundo, acho que Jesus nem liga muito para esse fato. Acho que as ocupações dele são outras!

Jesus Cristo é o maior de todos. Acredito sinceramente que ele é filho do Pai, e que desceu diretamente do sétimo céu para recolocar os seres humanos no trilho. Sua presença entre nós significou a descoberta do amor ao próximo e, mais do que tudo, da esperança.

Quem já teve a oportunidade de precisar de Cristo e de pedir sua ajuda verdadeira, com todas as forças da alma, sabe do que eu estou falando.

Que em 2.014, a mensagem Dele seja cada dia mais compreendida, longe dos interesses daqueles que lucram com a distorção dos Seus ensinamentos.

Feliz Natal a todos!

segunda-feira, 23 de dezembro de 2013

Ninfomaníaca, de Lars von Trier

Não sei onde foi que eu li que os 2.000 anos da era cristã acabaram muito mal, e que esse "vácuo" deixado pelas malditas religiões está sendo preenchido pelo sexo. Leia-se: pela pornografia.

Quando a arte deixa de imitar a vida e passa a incorporar os elementos da realidade na sua própria feitura, é sinal do fim dos tempos, ou seja, de que chegamos no limite do contemporâneo, e que uma mudança radical está para se operar.

A fruta já está amadurecida, a lagarta está pronta para virar borboleta.

O novo filme de Lars von Trier, "Ninfomaníaca", traz uma cena (ou mais) de sexo entre os atores. A coisa aconteceu de verdade. Quando eu soube disso, eu me fiz logo a seguinte pergunta: por que os atores têm que transar de verdade no set de filmagem, visto que não se trata de um filme pornográfico? Ou se trata? Ou a vida está tão medíocre que a arte não tem mais o que imitar, sugerir?

Vamos lá, vamos lá! Aonde o sexo quer nos levar?

Você, que agora me lê, é do tipo "sexo anal com manteiga em Último Tango em Paris", sexualidade onírica de Eva Green em The Dreamers, ninfoleptia de Lolita, ou virgindade pura e pagã de Liv Taylor em Beleza Roubada? Ou triângulo amoroso, esborrando sensualidade e beleza, em Vicky Cristina Barcelona?




Quando o artista suja a arte com o seu próprio objeto, é hora de mudar. Acho que Lars von Trier é o maior cineasta vivo, o único sujeito que faz vibrar em seus filmes a filosofia ácida e rebelde de um Nietzsche, por exemplo. Portanto, ele é o satélite cujo sinal a gente tem que prestar atenção. A situação inspira cuidados. Dá para ouvir os estertores do doente terminal.

Não vi o filme ainda, mas, pelo trailer, dá para sentir a sua potência. Uma antropofagia da cultura moderna, é o que me parece. O cinema é o deus das artes, pois o alimenta a literatura.




Germinal.




terça-feira, 19 de novembro de 2013

João era um cara legal, um sujeito gente fina. Fazia de tudo pelos amigos. Advogado, era incapaz de cobrar honorários dos seus amigos mais próximos. Na verdade, sentia vergonha de cobrar honorários até dos clientes desconhecidos. Dir-se-ia que nem dos inimigos João se sentia à vontade para cobrar.

A exemplo de Sócrates, João achava que o conhecimento não se vendia, nem mesmo o conhecimento técnico, e sonhava com um mundo onde as pessoas trocassem informações e conhecimentos sem cobrar nada uma das outras, convivendo em harmonia e consumindo apenas o necessário para a sua sobrevivência.

Quando se deitava na cama para dormir, todas as noites, por mais cansado que estivesse, João passava horas e horas com os olhos fechados, na escuridão, imaginando o mundo onde as pessoas se esqueceriam do dinheiro e viveriam apenas para serem felizes, felizes de verdade. Era comum que João adormecesse com um sorriso no rosto, alegre com seus pensamentos, mas também não era raro que dormisse com o travesseiro molhado de lágrimas, triste por causa do mundo em que vivia, no estado em que se encontrava.

Da hora que acordava até a hora que ia dormir, João ficava imaginando maneiras de ajudar as pessoas, de ser feliz, de fazer os outros felizes, de brincar, de pular por aí, de fazer um  piquenique no parque da cidade, de se sentar no banquinho da praça pública e conversar com os mendigos, de confortar os doentes nos hospitais, de adotar as criancinhas abandonadas pelos pais, de resgatar os viciados em drogas, e todo esse tipo de coisa.

Esse era João, que se envergonhava quando recebia o pagamento das mãos dos clientes, porque achava que o conhecimento, por menor que fosse, não se vendia por dinheiro nenhum no mundo. João adorava trabalhar; se pudesse, passaria a vida inteira trabalhando, porque "o homem é o seu trabalho", dizia. O que não entrava na sua cabeça era trabalhar unicamente pelo dinheiro, o mesmo dinheiro que era rodado naquelas enormes máquinas de xérox dos bancos e, depois, distribuído pelo governo para que os homens se matassem por ele.

Por causa desse seu jeito de pensar, João não conseguia arranjar uma esposa. "Porque as mulheres precisam de muito, e eu, de muito pouco", pensava. Os amigos também começavam a achar que João era realmente doido, com suas ideias de liberdade, e as mulheres riam nas suas costas. Todos estavam sempre dispostos a se aproveitar de João, e certo dia, ele percebeu aquilo. Deste dia em diante, João foi ficando muito triste, isolado de todos, cheio de cicatrizes na alma e desanimado da vida. Parecia mais uma rosa, murchando no vaso. Seus olhos começaram a perder o brilho, aqueles olhos tão cheios de bondade. Então, ele começou a sentir necessidade de mudar. Teria que amar menos a humanidade e cuidar mais de si próprio.

João havia sido traído por um amigo de manhã, um amigo do qual ele gostava muito, e essa traição o levou à conclusão de que ele não era nenhum tipo do super-herói e que, portanto, não poderia amar a humanidade impunemente, sem suportar as duras penas que esse amor impunha. Fitando o quadro de São Francisco de Assis, João chorou.

Mais tarde naquela noite (já era de madrugada), João acordou sobressaltado. Seu quarto recendia a um perfume misterioso mas muito, muito delicado e gostoso; era um perfume para a alma e ele acreditou ter visto, naquele instante, estampado na parede, o rosto do nosso senhor Jesus Cristo.

João ficou muito impressionado com o que vira, e chorou novamente, porque sentiu que o nosso senhor Jesus Cristo havia aparecido em seu quarto para confortar sua alma, do mesmo jeito que havia feito com São Francisco, quando este recebeu as chagas do seu mestre.

Depois desse dia, João acomodou sua alma dentro de um quartinho iluminado, numa nuvem lá no céu, e nunca mais foi traído pelos amigos e muito menos zombado pelas mulheres. Aprendeu a lidar com eles. E todas as tardes, antes do por-do-sol, ele se senta na beira do mar e, contemplando o horizonte, conversa animado com os anjos e sorri bastante, comungando com Deus.

domingo, 10 de novembro de 2013

O GATINHO DA DOMINGOS FERREIRA


Ontem de madrugada, voltando da escola de Filosofia que frequento quase todos os dias, eu já passava pela Avenida Domingos Ferreira, na altura da farmácia Big Ben (existem milhares delas, eu sei), quando fui surpreendido pelo grito assustado da minha irmã, que ia no banco do passageiro.

Era mais de meia-noite, e eu vinha viajando nos assuntos mais sublimes que se possa crer, como, por exemplo, o julgamento de Sócrates e o Mundo das Ideias de Platão; daí, vocês podem imaginar o susto que eu levei quando ela soltou aquele grito totalmente inesperado. Sustaço, vi a hora eu ter um infarto!  

O motivo: um gato na pista. 

- Qual gato! - ralhei, irritado tanto pelo seu grito quanto por ter sido pego de surpresa quando estava viajando na filosofia. - Qual gato, menina?! Deixa disso!

- Um gatinho estirado na pista... - sussurrou minha irmã.

Minha irmã parecia bastante abalada com o que vira. Balbuciou mais algumas palavras incompletas e depois tapou a própria boca com a mão, em sinal de profunda comiseração e abalo espiritual. Nesse instante, Lila encostou o carro dela ao lado do nosso, abaixou o vidro e falou sobre o mesmo gato, com cara de dó. 

Naquele momento, compreendi que as mulheres realmente são seres mais sensíveis que os homens, pois eu, além de não ter percebido o bichano na pista, não tive o menor impulso de ajudá-lo quando minha irmã gritou pela sua vida.

Diante dos apelos emocionados das meninas e movido por um sentimento de remorso, decidi retornar com elas e tentar ajudar o gatinho, que, segundo minha irmã, estava de olhos abertos (ela viu até o olho do gato aberto!!!). Chegando de volta ao mesmo ponto da avenida, dito e feito: lá estava o pobre felino, de pele negra e íris fluorescente, agonizando no meio da pista. O pobrezinho estava bastante assustado e com a pata traseira direita fraturada. Havia sido vítima de um atropelamento, mas, por sorte, o choque não fora fatal.

Encostamos os veículos próximos ao meio fio, ligamos o alerta, saltamos e nos pusemos a sinalizar para evitar que os poucos carros que transitavam pela avenida àquela hora passassem por cima do pobre animal. Um sujeito que vinha numa caminhoneta freou a tempo de terminar o serviço, desviou do bichinho e seguiu seu caminho. Dali a alguns segundos, outro carro parou, mas em vez de seguir seu caminho, estacionou mais à frente e, de dentro dele, saltaram duas meninas bonitas e simpáticas, que perceberam o ocorrido. Chamavam-se Aline e Débora, mas nós só nos apresentaríamos mais tarde.

Enquanto as meninas confabulavam sobre a dor do pobre gatinho, eu só conseguia pensar no perigo que era estarmos ali, alta noite, numa das avenidas mais movimentadas de uma das capitais mais violentas do Brasil. Sem contar, é claro, no risco de sermos atropelados por algum motorista bêbado, já que nós estávamos literalmente no meio da rua. 

Um carro de polícia passou e eu fiz sinal de "legal", mas eles nem deram atenção e foram estacionar na entrada da Big Ben. "O gato que se foda", pensaram, certamente. "Com tanto bandido pra prender, o gato que se foda. Deixa isso pros burguesinhos." De dentro da viatura, saltou um velho bêbado de barbas brancas. "Ajudar o gato, não ajudam, mas o bêbado...", pensei, indiferente. "Seus putos".

Depois de suspirar bastante, Débora foi até à calçada, remexeu o lixo e dali tirou um suéter azul-marinho todo estropiado. Com ele, enrolou o gatinho como se fosse um recém-nascido e nós o levamos até a calçada. O bichano agonizava, seus olhos estavam esbugalhados, devia estar sentindo uma dor dos diabos. Do lado direito da sua boca, um fio de sangue escorria moderadamente, sugerindo que a pancada, além de ter causado o esmagamento de sua perna direita, causou um leve (todo brasileiro tem um pouco de veterinário?) traumatismo em sua face. As cenas eram fortes.

Deitamos o gatinho na calçada, enrolado no suéter. O bichinho, apesar de estar nitidamente atordoado pela dor insuportável da pancada, debatia-se corajosamente e tentava a todo custo se por nas patas. Débora tentava acalmá-lo. "Cuidado para ele não te morder", adverti. Estive para perguntar se ela era veterinária, mas desisti. Lá da porta da farmácia, o velho bêbado da viatura lançou olhares em nossa direção. "Só falta essa porra desse bêbado resolver vir nos ajudar", pensei. Mas, por sorte, ele estava bêbado demais para prestar socorro a qualquer criatura além dele mesmo, e, cambaleando, entrou na Big Ben. A viatura, então, partiu.

Reunidas em torno do gatinho, que tentava a todo custo se desvencilhar do suéter, as meninas tricoteavam dolorosos suspiros de sofrimento. Lá importava que fosse um gato? Ainda que preto? E de rua? Nada! Era um animal que sofria, isso é tudo. Lila buscava acalmar as dores do bichinho com uma sessão de body talk, alternando batidinhas com as pontas dos dedos no seu peito e na sua testa. Enquanto isso, eu buscava de cabeça algum órgão público para o qual pudesse ligar para socorrer o enfermo. "190? Não, a polícia já mandou o gato se fuder mesmo. Carrocinha? Acho que não existe, só nos contos-de-fada. Bombeiros?"

- Vamos levar ele no veterinário - exclamei. 

As meninas se entreolharam.

- Boa ideia - responderam. - Tem um veterinário 24 horas ali na frente.

- É dele que estou falando - respondi, otimista.

- Pega aquela tábua ali para a gente coloca-lo em cima - sugeriu Aline, apontando para uma tábua que também se encontrava sobre o lixo. Peguei a tábua e, com a ajuda de Débora (ela mais do que eu, confesso) suspendemos o bichinho e o colocamos sobre a pequena peça de madeira, que serviu perfeitamente de maca improvisada. Levamos alguns minutos discutindo a melhor forma de transferir o enfermo para o hospital - se sobre o assoalho do banco do passageiro ou se na mala do carro. Mas o gatinho simplesmente não ficava quieto sobre a maca, talvez pressentindo que ela fosse sinal de morte. Então, não tivemos outra saída a não ser tirá-lo da maca e colocá-lo dentro de uma caixa de papelão, que também estava no lixo.

- Vamos todos para lá - disse eu, enquanto Aline terminava de acomodá-lo sobre o assoalho do seu carro. - Assim, será mais fácil convencer o veterinário de que se trata de uma caridade e...

Sim! Eu queria salvar o gato, mas não queria ter que gastar dinheiro para isso. Ora, se cinco jovens saudáveis eram capazes de parar na avenida Domingos Ferreira, mais de meia-noite, arriscando suas próprias vidas para tentar salvar um gato preto, por que o veterinário negaria a sua contribuição? Sociedade não é colaboração?

Em menos de 5 minutos chegamos ao 24h. Estacionamos sobre a calçada e apeamos, apressados. Aline carregava a caixa com apreensão, pois o gatinho se debatia muito dentro dela. Os flanelinhas que tomavam conta dos carros dos clientes do restaurante vizinho se agitaram ao ver a cena:

- É um gato, é?

- É.

- Morreu?

- Não, né, porra! Se tivesse morrido, a gente levava no cemitério, não no veterinário.

Dentro da clínica, o atendente, apesar do sono, recebeu-nos com educação. O lugar estava repleto de prateleiras, contendo produtos para animais, tais quais coleiras, caminhas de dormir, brinquedinhos de borracha, ração, etc., e rescendia a pelo de cachorro molhado. 

- Esperem que eu vou chamar o veterinário - disse o atendente, subindo as escadas em direção à enfermaria, onde possivelmente o cara tirava uma soneca.

Enquanto o esperávamos voltar, ficamos a observar a enorme variedade de produtos que havia na clínica. Aline depositou a caixa no chão, ao pé da porta de entrada, e voltou a conversar com Débora, que até então não dera uma palavra. Minha irmã e Lila estavam distraídas com os produtinhos das prateleiras, enquanto eu mantinha os olhos fixos na porta da enfermaria, no aguardo do atendente. De repente, fomos chamados à atenção por Aline. Naquele instante, a caixa de papelão na qual nós havíamos trazido o gatinho já não era mais uma simples caixa, era um caixão: o gatinho morrera. Aline foi a primeira a perceber:

- Morreu - ela disse, em voz alta, com o semblante decepcionado. Chegamos todos próximo à caixa, para espiar: eu, minha irmã, Lila, Débora e Aline. De fato, o bichinho parara de respirar e nos seus olhos já não havia mais a chama da vida. A lâmpada fluorescente que minutos antes refletia a luz dos faróis dos carros na avenida apagara-se para sempre. Olhando para aquele corpo intumescido e imóvel, lembrei-me da expressão em seu rosto quando o resgatamos da avenida: olhava para o além, como se já se enxergasse a morte em outra dimensão. Os gatos possuem esse poder de enxergar seres de outras dimensões, tanto que eles eram considerados animais sagrados no antigo Egito. E em nenhum momento choramingou ou desisitiu; o tempo inteiro tentou se colocar de pé. Se fosse eu no lugar dele, teria morrido com a mesma decência?

Mesmo acreditando que o gatinho já havia morrido, levamos o seu cadáver até a mesa da enfermaria, onde o veterinário o examinou. Auxiliado pelo atendente, o doutor apalpou o gatinho durante algum tempo, mas, enfim, decretou a sua morte. Houve uma leve comoção por parte das meninas. Eu também me comovi. A morte é sempre apavorante, principalmente quando você está envolvido em suas tranças. Era o fim do gatinho da Domingos Ferreira.

- E agora, como vamos enterrá-lo? - perguntou Aline.

- Deixamos na rua, próximo a algum lixeiro - respondi, pressentindo a facada que viria em seguida.

- Não - rebateu o veterinário -, existe uma lei municipal que proíbe sair daqui com corpos de animais mortos e deixá-los na rua.

Por um instante, meu lado advogado quis perguntar o número da bendita lei e questionar sua constitucionalidade, mas resolvi me manter calado, em respeito à gravidade do instante.

- Nós temos uma empresa que vem buscar os cadáveres para incinerá-los - completou o veterinário. Enquanto isso, o sem-vergonha do atendente continuava a apalpar o cadáver, simulando investigar a causa mortis

Silêncio na enfermaria.

- E quanto custa esse serviço? - perguntou Débora, corajosa como sempre.

- 95 Reais - respondeu o veterinário, um pouco vexado.

"Nessa porra", pensei, como um bom cristão.

- É... - balbuciou Débora.

- Vocês querem rachar esse valor? - sugeriu Lila, que sempre tem boas ideias, porque é uma alma boa de verdade, enquanto eu só conseguia pensar que mais uma vez o mercado saíra vencedor.

- Sim! - exclamamos todos, menos o veterinário e seu assistente, que de resto não estavam nem um pouco a fim de fazer caridade nenhuma. Eu também entrei na quota, é claro, embora duvidando seriamente que aqueles 95 reais seriam gastos na incineração do nosso gato, quando ele poderia muito bem ser enterrado de graça em qualquer canteiro do subúrbio... Julguei que definitivamente não valia a pena entrar naqueles pormenores. Se eu falasse o que pensava, ia acabar me indispondo com o veterinário e ainda por cima sairia como o advogado filho da puta mercenário de uma figa. O melhor mesmo era pagar os R$ 95,00 e fechar a noite com a sensação de que um ato de bondade havia sido praticado.

Na saída, Débora e minha irmã descobriram que trabalhavam com coisas parecidas e trocaram telefones. Elas duas e Aline ficaram conversando sobre teatro e libras. Na verdade, foi só nessa hora que nós nos apresentamos. Eu e Lila as convidamos para fazer o próximo Curso da nossa escola de Filosofia, e elas responderam que talvez, que a gente se falava, aquela coisa toda.

- Pelo menos a gente conheceu pessoas legais, talvez a morte do gatinho tenha servido para isso - comentou Lila comigo, enquanto minha irmã conversava com Aline e Débora. A observação de Lila foi muito útil, pois até então só conseguia enxergar aquela morte como um meio de dar R$ 95,00 à clínica veterinária.

- E o pior não é nada - interrompi. - Eu tinha sonhado contigo essa noite, passando pela rua, num buggy amarelo, cheio de gatos pretos dentro dele, mas eu não quis falar porque quem dirigia o buggy era um cara desconhecido. Depois, vocês paravam defronte a um toldo branco, armado numa esquina, onde havia umas meninas, e o sujeito te dava um beijo na boca.

- Caramba! - exclamaram Lila e Aline, que ouviram a conversa.

Finalmente, nós nos despedimos. Trocamos beijinhos e prometemos nos ver por aí, quem sabe?

Já dentro do carro, comentei com minha irmã que duvidava muito que fosse haver qualquer incineração ou coisa do tipo, e que achava mesmo que o gatinho seria enterrado em qualquer baixa de capim por aí.

- E por que tu não disse nada? - questionou minha irmã.

- Eu lá ia frustrar todo mundo? - respondi.

- E por que tu decidiu me frustrar agora, porra?

- Ah - respondi, encolhendo os ombros - porque você calhou de estar aqui, agora. Além disso, você não está nessa de incineração, está?


segunda-feira, 4 de novembro de 2013


Um belo artigo, por http://fabiochap.wordpress.com/ .

O desaforo 100.000.000 – O rei do camarote e o quase invisível rastro de sangue

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Como vai você? Já tomou um soco de cifrões nesse final de semana? Se não, lhes apresento o ‘rei do camarote’ Alexander de Almeida, o empresário que ‘caiu na balada’ e nos deixou em choque. E o susto não foi porque ele tem dinheiro saíndo pelos poros. Sabemos que muitas pessoas têm. Mas pelo modo com o qual ele torra essa grana e pelo modo como ele chama aqueles que criticam seu estilo de vida: ‘invejosos’.
Para compreendermos melhor a figura do senhor Alexander precisamos, antes, pincelar o principal propósito do capitalismo: gerar lucro. Uma vez que o sistema capitalista seja praticado quase unanimemente em todo o mundo, podemos chegar à conclusão: se alguém vai ter muito desse lucro, é certo e fatal que alguém terá pouco; ou nada.
A revista Veja – uma lamentável ferramenta de manobras políticas – mandou benzasso no modo que apresentou o empresário ao grande público. Foi de uma ironia fina tão grande que nem o próprio entrevistado sacou o quanto estava sendo ridicularizado. Alguém ciente de que ele poderia soar ainda mais patético, disse assim: ‘Então, vamos filmar seu closet e depois uma porta vai se abrir bem em frente ao seu rosto; magicamente você já estará vestido com as melhores grifes. Aí sim estaremos prontos pra cair na noite’. Obviamente ele concordou com a fanfarronisse. É um cara já desprovido de senso crítico.
Ele sabe que é uma figura amada por uns e odiada por muitos outros. Se diverte com isso. Diz que é inveja. E realmente é. Não é que gostaríamos exatamente de ter uma Ferrari, já nos bastaria sair de um lugar ao outro – principalmente em grandes cidades – sem sermos aloprados por um transporte público humilhante. Sendo de carro, de trem, metrô ou busão, a gente só gostaria mesmo é de ser 1/5 respeitado como o rei do camarote é.
Nem acho que a maioria de nós – no máximo príncipes e princesas da pista molhada e apertada – quer seguranças com 1 metro de bíceps garantindo passagem. Só não sermos empurrados como gado às 7h da manhã na linha vermelha do metrô já estaria de bom tamanho.
Não precisamos de tanto champagne; se não faltar nada para nossos filhos já está bom. Nem fralda, nem suco, cultura diversificada e uma vaga naquela escola que realmente ensine a ter conhecimento. Não precisamos de um helicóptero para agilizar as coisas, basta que, se nossos pais e avós tiverem uma emergência, que sejam tratado como ser humano pelo sistema se saúde. Que as escaras dos nossos parentes doentes não tenham moscas e larvas se alimentando da carne podre nos corredores de hospitais públicos (http://goo.gl/UzRM8Z).
Acredito que a maioria de nós não faria questão de pessoas da mídia ou celebridades em nossas festas, bastaria que conseguíssemos terminar essa festa. No RJ um aniversário acabou com bomba de gás lacrimogêneo no bolo da criança (assista à partir de 5’20’ do vídeo – http://goo.gl/rgGm6v). A repressão nas favelas existe para que reis de camarotes pelo Brasil afora tenham cada vez mais garantias de que podem esbanjar. Um assaltante pobre a menos – morto – por uma vela a mais piscando na garrafa de Veuve Clicquot; a sociedade topa rapidinho.
O rei do camarote precisa entender que é inveja, sim, não dos carros, das casas, das bebidas e das bundas. É a inveja de poder levar uma vida feliz, aparentemente mais tranquila e menos submissa a ciclo porco de lucratividade. De não ser tirado, humilhado e atropelado por um sistema prontinho pra devolver qualquer indignação com um cassetete na sua testa, mesmo quando se está a trabalho (http://goo.gl/qQY1II).
Algumas pessoas não enxergam as contradições dentro de si. Compartilham vídeo e matéria sobre Alexander ao mesmo tempo em que criticam os movimentos sociais das ruas. Não percebem que um black block, quando quebra um banco ou concessionárias de carros importados, está gritando para que existam menos Alexanders e, consequentemente, menos Amarildos sumidos. As pessoas criticam a atitude de lavar o chão com champagne – citada na matéria – e, ao mesmo tempo, mandam a polícia ‘descer bala’ em quem se revolta com isso tudo. Não está muito claro que só estamos apanhando na rua pra sustentarmos mais reis do camarote? O consumo e os grandes empresários são os verdadeiros donos de SP, do RJ, do Brasil e de boa parte do mundo. Todo aquele que se voltar contra isso será espancado, preso e, assim que possível, condenado – preferencialmente como organização criminosa. Na visão das autoridades não é Alexander que comete um crime – ao menos às vistas -, é quem se revolta na prática com essa sujeira.
Uma das coisas que – preciso dizer – não é tanta inveja assim, é a visão de mundo que você, rei de areia, tem. Está muito claro que só o seu ângulo te importa, mas sinto lhe dizer, apesar da Gucci e Prada na sua gaveta, você está ‘so last week’ com esse pensamento. Somos de uma geração que quer outros ângulos. Quer mais verdade. Uma geração que se importa mais e cuida mais. Seus movimentos são no sentido de ter o luxo garantido e manter o padrão quase bilionário. Nossos cuidados são para que, ao menos, exista uma padrão não humilhante de vida. Seja nos impostos, nos transportes, na moradia, na educação e saúde. Alguns de nós não sentem necessidade de ir pra Ibiza todo ano, mas que, pelo menos, consigamos ir até a Câmara gritar que ‘tá tudo errado’ sem respirarmos gás, pimenta ou recebermos argolas de aço em nossos pulsos.
O dinheiro parece comprar tudo, mas só parece. Que comprou a sua decência, é um fato, rei do camarote. Mas ele não compra a minha chance de te dar a letra: vamos caçar seu estilo de vida até pegarmos e ele morrer por falta de circulação.
Esse lixo de tapete vermelho que te estendem é pintado com o sangue de cada fudido amassado no trem, assaltado na viela, assaltante de viela, preso nas manifestações, humilhado em seus empregos, retirado de suas casas, jogado nos presídios, abandonados nas UTI’s, rejeitados nas escolas, condenados por nascerem sem pulserinha vip.
Meu camarote é a rua e lá eu vou sangrar para dar fim à sua festa. 2014 vai te dar medo de viver, Alexander.

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

O Recife de mármore

 "Logo na segunda página, onde assinalava como uma vergonha a preponderância dos interesses pecuniários, o banqueiro fez uma careta. Depois, entrando no capítulo das reformas, Frédéric pedia a liberdade do comércio:

- Como?... Mas perdão!

Ele não entendeu, e continuou. Reclamava o imposto sobre rendimento, o imposto progressivo, uma federação europeia, e a instrução do povo, o maior estímulo às belas-artes.

- Se o país desse a homens como Delacroix e Victor Hugo cem mil francos de rendimentos, que mal haveria nisso?

E no fim vinham os conselhos às classes superiores:

- Não poupeis nada, ó ricos! Dai! Dai sempre!"

Este pequeno discurso, elaborado  por um jovem burguês do início do século XIX, dirige-se a um nobre porém aflito banqueiro, que busca uma maneira de manter sua fortuna, em meio ao caudaloso golpe burguês que destronara o rei da França e abrira os caminhos para a implantação da República. São trechos do romance A Educação Sentimental, do célebre escritor francês, Gustave Flaubert.

Não me parece incrível que O Manifesto do Partido Comunista tenha inspirado definitivamente o referido golpe burguês. Parece-me incrível, isto sim, que muitos adoradores de Marx (muitos se encontram no poder, diga-se de passagem) ainda combatam uma ideia velha.

Ontem à noite, estive no Teatro de Santa Isabel para assistir à opera Don Giovanni, de Mozart. Certamente, quanto a isto, alguém dirá: "é uma vergonha essa ópera no Santa Isabel, pois tendo-a visto na Europa, jamais perderia meu tempo assistindo a ela em Recife". Eis o velho orgulho provinciano recifense, que atravanca o progresso da cidade como um todo. Não admira que o próprio Don Giovanni sorrisse disto.

Vivam as mulheres, viva o bom vinho, sustento e glória da humanidade!


Quando eu era mais jovem, conectei Machado de Assis a Gustave Flaubert de maneira indissolúvel. Mais tarde, veio se juntar aos dois primeiros a figura de Stendhal. Quincas Borba e Dom Casmurro não escondem as influências sofridas pelo nosso escritor fluminense dos autores de O Vermelho e o Negro e Madame Bovary; A Educação Sentimental, por sua vez, escancara a fonte estética e o drama social que marcou profundamente a obra de Machado.

Sabemos também que o Classicismo influenciou de maneira marcante a sua obra. Em seus romances, as óperas são sempre momentos especiais, ocasiões em que seus personagens deixam transbordar as fraquezas, os preconceitos, mas também onde confessam suas aspirações cosmopolitas. Ali, também, Machado sempre evoca a evolução do nosso país, por meio da arte, que alimenta o espírito e não deve faltar na educação das pessoas.

Eu, sentado no pátio da escola, a ler Dom Casmurro, suspirava: - No dia em que tivermos óperas em Recife, aí sim, serei feliz! Eis, pois, a ópera, a alegria, e, somadas a isto, as duras críticas à exploração que uma restrita casta de cidadãos impõe a uma multidão famigerada, carente de tudo - inclusive, de arte.

Longe de querer me tornar melodramático, mas Don Giovanni também não foge à lógica da angústia burguesa: o próprio Mozart não foi massacrado pela nobreza, pela falta de dinheiro, pelos prazos, pelo medo enfim de sucumbir à miséria?

A chegada de Marlos Nobre à regência da Orquestra Sinfônica do Recife já me havia alegrado, e agora torço para que esta ópera, - espero que a primeira de muitas -, permita que nossa cidade se sutilize progressivamente. Parece que o governador está de olho nisto. Nada lhe escapa, de fato. Marlos Nobre agradeceu muitíssimo ao prefeito no último concerto. Bem, se o caminho tiver que ser este, que seja. Contudo, não estacionemos!

Quanto à obra em si, muito temos a aprender com Don Giovanni - os homens a as mulheres! Vale a pena assistir. Afinal, "a morte dos pérfidos é sempre igual à sua vida". Ou, como eu gosto de dizer: a gente só morre daquilo que viveu.




Onde: Teatro de Santa Isabel.
Quando: hoje e amanhã, às 20h; domingo, às 19h.
Quanto: R$ 40,00, estudantes, idosos e professores pagam meia-entrada.
Dica: Preferir camarote, e chegar cedo para se sentar na frente. 

domingo, 18 de agosto de 2013

Padrão

Padrão

O esforço é grande, e o homem é pequeno.
Eu, Diogo Cão, navegador, deixei
Este padrão ao pé do areal moreno
E para adiante naveguei.

A alma é divina, e a obra é imperfeita,
Este padrão sinala ao vento e aos céus
Que, da obra ousada, é minha a parte feita:
O por-fazer é só com Deus.

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas Quinas, que aqui vês,
Que o amor com fim será grego ou romano:
O mar sem fim é português.

E a cruz ao alto diz que o que me há na alma
E faz a febre em mim de navegar
Só encontrará em Deus na eterna calma
O porto sempre por achar.

(Fernando Pessoa)

terça-feira, 13 de agosto de 2013

A lama que vem do mangue.

Segunda-feira, 9 horas e 54 minutos da manhã. Faz calor no Recife, principalmente na região que ocupa o interior deste paletó negro que me veste. No caminho de casa para o trabalho, encontro o de sempre: muito calor, muita sujeira, muitos buracos no asfalto, muito barulho, muito pedinte, dezenas de ambulantes a gritar e praguejar contra o mal tempo, etc. Enfim, tudo aquilo que compõe o belo cenário cotidiano da Veneza brasileira, orgulho dos recifenses.

À beira do canal de Boa Viagem, que perfuma o bairro nobre com seu odor de bosta e de urina, famílias inteiras de mendigos maltrapilhos tomam café da manhã alegremente. De lá, cobiçam o hotel abandonado, do outro lado da rua, que por duas ou três vezes ilegalmente ocuparam, e que foi batizado, na ocasião, de Residencial Barack Obama.

Alheia a tudo isto, no rádio do meu carro, Maria Bethânia canta vigorosamente alguma música de Roberto Carlos, que de mais a mais, parece ter nascido para compor músicas para a diva baiana.

Chego ao meu destino em pouco menos de dez minutos e estaciono meu carro na rua mesmo, porque não há vagas no estacionamento do escritório. Isso significa que, ao meio-dia, o carro estará tão sujo quanto se passasse a semana inteira estacionado na garagem do edifício. Mais dinheiro para o lavajato e menos para mim. Eis o ciclo da vida.

Dou bom-dia a todos os porteiros, ao manobrista, ao segurança e à faxineira. Tomo o elevador e chego à minha sala. Dou bom-dia a todos, dispo-me do paletó e sento na cadeira.

Segunda-feira, início da semana. Pessoas começando regime, aquela coisa toda. No sábado, às nove horas da noite, um cliente havia me ligado, cobrando uma posição a respeito do seu processo. No sábado, eu disse. Às nove horas da noite, eu disse. Com o fórum fechado, e o juiz, descansando. Ele próprio, o cliente, tinha a voz embargada pela cachaça. E eu, o único que não tem direito a descanso. Nem aos sábados. Nem às nove horas da noite. E depois, as pessoas não entendem por que os advogados são gordos e carecas. Eis o ciclo da vida.

Por isso, na segunda-feira, a primeira coisa que faço quando chego ao escritório – antes mesmo de entrar no Facebook e invejar a felicidade geral da população recifense – é pegar no telefone e ligar para o Fórum da cidade onde corre o processo do meu cliente.

- Bom dia. Me transfira para a 2.ª Vara Cível, por favor (me permitam ocultar a cidade, para evitar constrangimentos a possíveis leitores).

A telefonista transfere a ligação. Atende o servidor da Vara. Digo o número do meu processo e ele o abre na tela do seu computador:

- Pois não, senhor, em que posso ajudar?
- Então, amigo, eu queria saber como é que a gente faz para marcar a perícia do meu cliente; desde março que o processo foi remetido para a perícia, e até agora eu não fui intimado, não recebi ligação, nada.
- Sei...
- E como você pode imaginar, meu cliente me liga bastante, cobrando... Afinal de contas, trata-se de uma verba alimentar, e já faz um ano e meio que eu dei entrada no processo e...
- Olhe, senhor – interrompe o jovem, destemido – o senhor tem que ligar para o Centro de Perícias e ver lá como é que faz, porque aqui a gente não sabe como funciona.

Silêncio de ambos os lados.

- Você tem pelo menos o telefone de lá? – pergunto, meio atarantado, porque confesso que não esperava por essa resposta.

Lá de dentro, uma voz feminina grita o número da Central de Perícias. O rapaz repete o número em voz alta, que eu me apresso em anotar. Em seguida, agradeço e desligo o telefone.

E fico com a certeza de que o povo de Pernambuco tem os políticos que merece e o Judiciário que merece, em obediência à lei que Platão, Rousseau e tantos outros filósofos já se cansaram de explicar. E que o orgulho e o complexo de superioridade especificamente dos recifenses ainda vai levar essa cidade de volta à condição da qual ela não deveria nunca ter sido arrancada tão indiscriminada e violentamente: para dentro do ventre do mangue.





segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Eu, tu e nós

Um passo importante na vida de qualquer homem é substituir o "eu" pelo "nós". Quando um homem faz essa singela troca de pronomes, em seu discurso, isso significa que ele pelo menos já considera a possibilidade de que construir para os outros e com os outros é melhor e mais importante do que construir para si. E junto, de preferência.

Quando abandonamos a nossa zona de conforto, o Universo olha para nós. Sabe, eu acho que as pessoas amarguradas e más são sempre aquelas que nunca abandonam a sua zona de conforto. Zona de conforto, nós sabemos, é aquela redoma invisível na qual alguns de nós nos encarceramos de vez em quando e cujos limites nos transmitem uma falsa sensação de segurança, porque as variáveis que orbitam por dentro da redoma nos são supostamente conhecidas.

Portanto, as pessoas que se metem deliberadamente dentro da sua zona de conforto estão sempre a desdenhar daqueles que se lançam à vida. Trancafiam-se lá dentro e atiram a chave fora. De lá, põem-se a lançar pedras contra os telhados dos outros, porque subiram na laje da sua pequena casinha de tijolos e pensam que podem tudo. São os reis das lajes. Tristes pessoas que... Não podem reinar além de seus próprios telhados.

E ser o rei do seu telhado não é má coisa, na verdade - desde que você não perca a coragem de saltar dele de vez em quando para alçar voos pelo mundo, porque, afinal de contas, ninguém leva a casa de tijolos no bolso quando sai para voar. Passarinho não carrega a gaiola nas costas quando voa, a não ser nos contos de fada.

Viver dentro da zona de conforto é como ser peixe dentro do aquário: tem comida, tem segurança - mas não tem o inefável gosto de arriscar a própria vida na busca por novos horizontes. Nada de novos temperos, de novos peixinhos, de fugas alucinantes de tubarões e de novos amores. Não. O deus dos aquários é previsível demais para os pássaros.

Assim, quando um ser humano abandona a zona do "eu", ele está consequentemente abraçando o "nós" e saindo da sua zona de conforto. Daí, ele se liberta de toda a amargura que antes o acorrentava ao solo, porque agora ele sabe que o mundo é grande e que a força só está com quem ama. Não basta ser capaz de amor, tem que ser capaz de amar.

Eis a magia da vida: atirar-se sem medo no "nós".

Viva o amor.

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

A Morte de Sócrates

Dica de leitura do Samba de Terno: 276 páginas. R$ 34,90 (Livraria Cultura).


Por incrível que pareça, mesmo depois de setecentos milhões de livros e artigos escritos sobre o maior filósofo da Antiguidade - Sofista dos Sofistas - este livro sobre a morte do "homem que bebeu cicuta" vale muito a pena!

Quanto a Sócrates, particularmente, não me canso de amá-lo e de admirá-lo. Sócrates sempre foi como uma espécie de pai para mim. Muito da minha melancolia foi curada pelas suas ideias. É estranho sentir amor por um ser que eu não conheci, e que, ademais, morreu há mais de dois mil anos... Mas, quem entende as razões do coração? Quem dirá que o amor conhece os limites do tempo e do espaço?

Como não amar um homem que, no final das contas, morreu em favor da verdade, da humanidade e da liberdade? Não foi ele o precursor do Cristo, o maior entre os grandes?

Pois bem! Está recomendado. A autora do livro, a bem da verdade, eu desconheço, mas nem por isso fui procurar no Google. Escreve com alma. As tintas são as mesmas, o quadro é que ficou ainda mais vivo. Como dizia Raul Seixas, "a música é uma história simples, que ninguém se cansa de ouvir". E se Nietzsche dizia só ser capaz de acreditar num Deus que dançasse, digo-lhes isto:

Sócrates é música do Universo.


 

"Conhece-te a ti mesmo."

Boa leitura!

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

Caetano Veloso

Hoje é o septuagésimo primeiro aniversário do seu nascimento, e me parece que a ideia de vê-lo morrer deixa minha alma numa espécie de perplexidade palaciana, como se a própria gênese do meu mundo tivesse a ver com a sua música.

A minha educação foi pela música, pelo cinema, pelo teatro e, principalmente, pela literatura. E foi no sincretismo cosmopolita de Concretismo com Simbolismo das suas canções que eu achei os primeiros impulsos da criação do mundo. Foi na adolescência.

Ai do Brasil sem a tua música.

Um grande abraço.




quinta-feira, 27 de junho de 2013

Napoleão Bonaparte!

Essa semana eu li duas biografias sobre Napoleão Bonaparte. Se você for igual a mim, que adora biografias, vai gostar delas.

Um personagem apaixonante, dono de uma trajetória admirável e inspiradora. Um homem, é verdade, dado às paixões humanas com a inteireza do seu ser. Mas, por outro lado, uma espécie de semideus, convicto da potência de sua centelha divina. Soube como poucos utilizar toda a sua energia em seus projetos.

Isso tudo somado permitiu à criança pobre da Córsega se tornar o homem mais poderoso da Europa do seu tempo. Um vulto tão atraente, que embriagou não só os homens de sua geração, mas também os das gerações vindouras. Explica-se assim que grandes escritores como Stendhal, Vítor Hugo e Alexandre Dumas tenham dedicado centenas de páginas, com verdadeira adoração, ao general que se tornou imperador por meio exclusivamente das suas virtudes - abençoadas, é claro, pela Fortuna que acompanha os homens corajosos.

A linguagem fluida e o foco cirúrgico de André Maurois fazem dessa biografia uma leitura eletrizante. Ponto positivo também para as gravuras, que enriquecem ainda mais o livro.

Soldado por vocação e exímio estrategista, subiu gradativamente na hierarquia militar, até atingir o posto de General. Dali, sua incomum habilidade política o alçou ao posto de Cônsul, após um pequeno golpe de Estado. Por fim, sagrou-se Imperador da França.

Não se pode dizer que o Oficial Napoleão Bonaparte tenha perdido uma só batalha militar na vida, mesmo quando decidiu recuar, em Moscou - e até mesmo em Waterloo, se caiu em seguida, foi porque não quis mais hostilizar a Europa à custa das vidas dos cidadãos franceses.

No campo amoroso, também se pode dizer que foi um homem vitorioso. Bem... Se é verdade que sua primeira esposa, Josefina, a quem devotou amor eterno, o traía sem muito pudor (Napoleão inclusive sabia), nosso herói não será o primeiro nem o último grande estadista a sofrer desse mal da infidelidade feminina.

Cabe, por fim, o registro do autor de cabeceira de Napoleão Bonaparte: Plutarco foi o grande esteio da sua fundação filosófica. E eu, que sou amante dos filósofos gregos, atribuo a esta paixão de Napoleão por Plutarco não um mero detalhe, mas um encontro de almas afins - tal obra, tal inspirador.

Ardente biografia de Napoleão, por Stendhal. A sua devoção ao General, a quem serviu, explica-se novamente pela lei da afinidade das frequências: gênios se arvoram em gênios.


Encontram-se nesse livros as razões suficientes para a legitimidade do mito. Ah! E se Dumas dedicou uma "Biografia Literária" ao Imperador que se auto-coroou, debaixo do nariz do incrédulo Papa Pio VII, é porque até nisso Napoleão se destacou: possuía um relevante talento literário.


"Eh bien, imagino que tenha havido algo de valor naquilo. Mas digamos Waterloo... Era lá que eu devia ter morrido."



terça-feira, 25 de junho de 2013

Hércules e a Hidra.

Em 1.789, estourava na França a Revolução talvez mais impactante de todos os tempos - a Revolução Francesa. Dentre os estudiosos do movimento de alcance universal, há aqueles que defendem que "A Revolução Francesa ainda nem terminou".

Evidentemente, ninguém quer falar seriamente sobre Revolução no Brasil. Pelo menos, aqueles que sabem que, se em 1.789 foi necessário degolar dois ou três milhares de aristocratas e de "traidores da República",  para fazer triunfar a Revolução, em 2013, a morte como meio de se obter direitos fundamentais do ser humano não se coaduna com o novo mundo que queremos construir.

Durante a Revolução Francesa, houve muitas mortes, especialmente durante o período do Terror. Robespierre e Napoleão Bonaparte foram os principais legados políticos daquela época tumultuada da França.


Não vou aqui me aventurar a traçar paralelos entre a Revolução Francesa e os protestos que tomam conta do Brasil desde meados do mês de junho deste ano. Nem tenho condições técnicas para isto. Mas uma coisa eu posso dizer: se há um fator fundamental que conecta os dois momentos históricos, este é a situação insustentável a que o governo submeteu a maioria do povo. Opressão. Brincadeira. Desrespeito. Descaso.

O povo brasileiro tem sido montado desde a época do "descobrimento", tal qual um cavalo no eito, e tem sido esporado desde então, a fim de sustentar uma classe aristocrática que se reveza no poder há mais de quinhentos anos.

Quando um movimento dessa magnitude se levanta num país, só cabem, a meu ver, duas condutas plausíveis. Melhor dizendo, das diversas possibilidades, duas perguntas correm dentro da imediata prudência:

A) O que está havendo (de fato)?
B) Onde isso tudo pode chegar?

Na quinta-feira da semana passada, eu me juntei ao movimento. Movimento que começou como de costume, ou seja, fundado sobre o propósito do passe-livre (MPL), tendo como principais organizadores os partidos de esquerda, especialmente os que têm grande influência no movimento estudantil, dentre os quais podemos destacar o PT, o PCdoB (UJS), o PSTU, o P-Sol, etc.

Todos os anos, para quem não sabem, os estudantes organizam movimentos para protestar contra os aumentos das passagens dos ônibus. É uma espécie de ritual e, ao mesmo tempo, de laboratório para aqueles que têm a política correndo nas veias. Portanto, em 2013, os partidos de esquerda fizeram a mesma coisinha de todos os anos, acenderam a mesma "fogueirinha" de todos os anos, a fim de protestar contra o aumento da tarifa do transporte público. E quando eu digo "fogueirinha", não é no sentido de diminuir ou menosprezar o movimento.

Protestos contra aumentos na tarifa dos transportes são comuns. Durante o protesto de 2007, por exemplo, levei até tiro de bala de borracha  (doi!). O gigante acordou? Onde ele estava enquanto a gente levava bomba de efeito moral no pé-do-ouvido?


Mas... Como já dizia Heráclito de Éfeso: "nada no universo é permanente, exceto a mudança". E assim, ventos inesperados sopraram na planície onde fora acesa a "fogueirinha", e as labaredas se lançaram bruscamente em direção ao solo, ao céu, ao mar, em todas as direções, como se fossem línguas de dragões furiosos, lambendo com fúria tudo ao seu redor. Em poucas horas, o fogo se alastrou e fugiu ao controle dos primeiros manifestantes. O combustível do incêndio? Décadas e mais décadas de esquecimento e exploração do povo brasileiro. O veículo do combustível? A internet, as redes sociais - o Facebook.

Mark Zuckerberg, criador e administrador do Facebook, apoia os protestos no Brasil. Bom ou ruim? Sei lá! Eu sempre penso que os americanos não desejam nossa emancipação política.

Assim, o movimento, que era para ser "do passe-livre" (tarifa zero para os ônibus) - bastante pontual, portanto - tomou dimensão muito maior do que o esperado - tanto que os primeiros manifestantes trataram de tirar o time de campo, tão logo tomaram consciência do ninho de vespas o qual tinham atiçado.

Mas, por que esses primeiros manifestantes, supostamente mais politizados, tiraram o time de campo no exato momento em que o povo saiu das arquibancadas e partiu para a marca do pênalti, com mais afã do que um beduíno quando encontra um poço d'água no meio do deserto?

Simples: porque eles JAMAIS quiseram estabelecer o caos no país. Quando os rapazes e as moças, capitaneadas pelas raposas velhas dos movimentos sociais de base, perceberam que o coquetel molotov era mais quente que o sol, pegaram a saída do vestiário e deram no pé. Em outras palavras, perceberam que o feitiço poderia virar contra o feiticeiro - como de fato parece que virou. Porque o movimento saiu do controle de todo o mundo. Neste exato momento em que escrevo esse post, ele está fora de controle, e Deus, na sua eterna sabedoria, é quem impede que a massa faminta promova vingança contra os políticos corruptos que assolam o país há décadas.



O protesto dos brasileiros é, acima de tudo, contra os desmandos da lógica de mercado, somado à brutal corrupção que sempre foi tratada com impunidade no nosso país. Caros amigos, se nos aparece um Robespierre ou mesmo um Rousseau, eu penso que muita cabeça tinha rolado pelas rampas que conduzem ao Congresso Nacional... Mas, não. Curiosamente, coube a uma multinacional, ferida em seu orgulho marqueteiro contra outra montadora, elaborar a propaganda televisiva que detonaria a bomba-relógio. Quem diria que a FIAT seria responsável pela propaganda, contendo a mensagem subliminar que tirou o povo brasileiro das arquibancadas e o levou às ruas para protestar, em plena Copa das Confederações?







Pois é. Os mais céticos dizem que tudo vai dar em nada, porque não existe uma pauta clara de reivindicações por parte dos manifestantes. Outros apontam a despolitização do povo como fator principal de provável insucesso do movimento. Eu, de minha parte, me junto à turma que olha tudo com espanto e cautela, misto de alegria com tristeza, e atribuo a uma razão superior o vendaval que agita o nosso país. Queremos mudança de postura. Homens melhores estão se formando, e estes novos homens bons querem que a velharia corrupta se mande daqui. Sem violência, é claro. Mas que se mandem.

Se os movimentos fascistas golpistas (eles se sabem) pretendem se aproveitar do momento para fazer o que sabem fazer de melhor - dar golpe -, é bom se ligarem que os mesmos jovens que podem ter dado abertura à ideia do golpe estão dispostos a entregar a vida pela democracia. Da mesma forma, políticos que se aventurem a surfar na onda dos protestos podem fatalmente se chocar contra os corais que repousam ameaçadoramente no fundo do oceano.

O oceano é cheio de mistérios, principalmente quando está em procela. Já dizia meu pai: mar não tem cabelo.

O componente metafísico que anima a coletividade brasileira despertou. O gigante, na verdade, não acordou, porque não dormia inteiramente; apenas as células dos seus órgãos que ainda dormiam é que despertaram.

A internet está para nós assim como o fogo esteve para os nossos ancestrais. Ajudou a clarear a coisa toda, graças ao sacrifício de Prometeu. Com tudo mais claro, apanhamos a hidra de calças curtas, escondida nas trevas. Ei-nos agora, com a força de um Hércules.

Não é Revolução: é Evolução.

quinta-feira, 14 de março de 2013

Habemus Franciscum




O processo de eleição do novo papa, que terminou nessa quarta-feira, me deixou bastante tenso. Enquanto eu aguardava o início de uma audiência penal, me flagrei roendo as unhas de nervosismo, enquanto a TV mostrava a bendita fumacinha saindo pela chaminé da catedral de São Pedro.

Isso tudo foi muito estranho! Ora, eu não me considero católico, já há algum tempo, de modo que a escolha do novo papa supostamente não me tocava em nada. Mas não foi bem assim. Nesse conclave, diferentemente do anterior, eu fiquei apreensivo e ao mesmo tempo esperançoso de que a Igreja pudesse enfim "olhar para dentro de si" e eleger um papa decente para ocupar o lugar de Pedro Simão. E quando eu digo decente, refiro-me a algum cardeal que pertencesse à Teologia da Libertação ou que, ao menos, estivesse disposto a dialogar sobre as bizarrices que a Igreja tem acobertado ao longo dos séculos (pedofilia, ditaduras, etc.).

Pedro Simão, o primeiro papa da Igreja Católica.


Sinceramente, eu não esperava que a Igreja elegesse uma papa que fosse discutir os seus dogmas. Por exemplo, o fim do celibato ou o uso de preservativos, isso eu não esperava que a Igreja fosse negociar com a sociedade. Dogma é dogma, a Igreja foi fundada sobre dogmas, e faz parte dela quem quiser. Como já disse Umberto Eco, a Igreja não tem que mudar seus dogmas para agradar aos fiéis, os fiéis é que têm que se adequar aos dogmas da Igreja. Em outras palavras, os incomodados que se mudem.

A eleição do papa argentino, Jorge Mario Bergoglio, é a cara da Igreja. Em primeiro lugar, trata-se de um sujeito de idade avançada, o que garante, ao menos em tese, um papado curto. Em segundo lugar, é latino-americano, porque ou a Igreja metia um papa americano, ou fechava as portas.  A pobre da América Latina, que luta em agonia para se livrar dos séculos de exploração da Europa, ainda se encontra de joelhos perante essa doença chamada catequese.

Portanto, um papa argentino, idoso, "franciscano", conservador, amigo da ditadura militar, filho de italianos e jesuíta não poderia ser escolha melhor para manter o status quo da Igreja. Pior de tudo: quando eu ouvi a nomeação dele, e que ele tinha escolhido o nome de Francisco I, fui tomado por uma onda de otimismo. Pensei que se tratasse de uma referência ao grande Francisco de Assis, o maior de todos os cristãos depois do próprio Cristo, símbolo maior de Bondade nesse planeta.

Qual o quê?! O Francisco que inspirou o novo papa não foi o de Assis, mas sim, o Xavier, fundador e pioneiro da Companhia de Jesus, responsável pela agonia dos nossos índios e braço direito da maléfica colonização ibérica na América Latina.

Francisco Xavier, fundador da Companhia de Jesus, inspirou a escolha do nome do novo papa.


Para quem já não se lembra (os católicos, os católicos...), Francisco de Assis, já despido de suas riquezas e laborando como "pedreiro de Deus", recebeu, certa manhã, a notícia de que não poderia seguir na sua pregação. Sua igreja, a mando do bispo, foi atacada e alguns de seus seguidores foram mortos na ocasião. Na verdade, tudo não passava de uma contra-ataque da Igreja, diante do voto de pobreza de Francesco, que assombrava as famílias nobres da cidade de Assis. Imediatamente, Francisco partiu para a sede da Igreja, em Roma, a fim de ter uma audiência com o papa Inocêncio I. Diante da sua pobreza e dos trajes maltrapilhos que vestia, Francisco foi recebido com escárnio e zombaria pela corte papal e, não fosse a intervenção de um amigo influente, teria maiores dificuldades em ser recebido, mais tarde, pelo pontífice. Francisco foi então anunciado. O papa o aguardava, sentado no trono, no auge da sua pompa, coberto de joias preciosas. Diante da zombaria em torno de sua figura, Francisco ajoelhou-se e replicou aos presentes e ao próprio papa:

"Olhai os lírios nos campos. Eles nascem com espinhos, porém, nem Salomão, no esplendor de sua glória, vestiu uma roupa tão bela quanto a deles. Olhai os pássaros no céu; não semeiam nem armazenam centeio, porém, o Senhor lhes provém."

Francisco de Assis é recebido pelo papa Inocêncio I: "Olhai os pássaros nos céus..."


Sua Santidade então compreendeu que todos ali, com exceção de Francisco, haviam esquecido a lição de Cristo e tinham caído em luxúria, vaidade e cobiça. Emocionado, Inocêncio I ajoelhou-se e, abençoando Francisco, beijou-lhes os pés sujos e chamou-o de verdadeiro cristão. E foi assim o encontro de Francisco de Assis com o papa.

No museu dos franciscanos, em São Paulo, há uma estátua em exposição, na qual Francisco, após receber as chagas do Cristo alado, encontra-se em seu colo. Francesco não era pouca coisa, pois esta estátua é a única no mundo que retrata o Cristo com asas.

Cristo desce à Terra para "entregar" as chagas a Francisco de Assis


Se por um lado a escolha do papa argentino (filho de italianos) é um fato histórico, por outro, pode acabar sendo um meio de desestabilizar politicamente a América Latina, no momento em que a Europa está economicamente arrasada e a América começa a se libertar do seu jugo. Quanto do nosso sangue foi derramado para satisfazer aos caprichos dos antigos reis? Quanto do nosso suor foi derramado para manter a riqueza daquele continente? Quantos dos nossos índios foram escravizados para enriquecê-los? Quanto do nosso ouro financiou as guerras e as maluquices das nações europeias? Quanto da nossa felicidade foi nublada pelos bancos daquele continente?

Amigos, eu sinto que pouca coisa mudou de 1.500 para cá, e que os europeus continuam nos enxergando como índios selvagens e heréticos. E que boa parte da Igreja Católica é eminentemente europeia. Etnocentrista. Catequética. 

Portanto, eu vos convoco a pensar: quem legitima a Igreja?

Por fim, vale a pena lembrar que o próprio Francisco, não o Xavier, mas o de Assis, já prestes a morrer, pediu encarecidamente aos seus seguidores que não fundassem nenhuma igreja nem nenhuma ordem após a sua morte. E que também nunca reformassem a pequena igrejinha que construíra em vida. Ora, ele bem sabia que a fundação de uma ordem seria o melhor caminho para se esquecer os seus ensinamentos. Dito e feito. Os franciscanos só sossegaram quando conseguiram sua própria Regra. Uma pena...

Desejo, do fundo do meu coração, que o nome do Francisco, escolhido pelo papa em homenagem ao jesuíta, acabe por invocar o arquétipo do outro Francisco, o grande amigo dos homens e de Deus. E que ele possa servir de instrumento de reforma para os seus líderes e de luz para os seus fiéis.

Habemus Franciscum.